Presidência da República
Casa Civil
Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos

DESPACHO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

Processo nº 00407.018385/2019-15 . PARECER Nº JM - 03 de 04 de setembro de 2023, do Advogado-Geral da União, que adotou, nos termos estabelecidos no Despacho do Consultor-Geral da União n.º 00595/2023/GAB/CGU/AGU, o Parecer n.º 00015/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU. Aprovo. Publique-se para os fins do disposto no art. 40, § 1º, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Em 04 de setembro de 2023.

 Brasília, 04 de setembro de 2023.

 LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

 PARECER  Nº JM - 03

ADOTO, para fins do art. 41 da Lei Complementar 73, de 10 de fevereiro de 1993, nos termos do Despacho do Consultor-Geral da União n. 00595/2023/GAB/CGU/AGU, datado de 04 de setembro de 2023, o Parecer n. 0015/2023/CONSUNIÃO/CGU/AGU, datado de 04 setembro de 2023, e submeto-o ao EXCELENTÍSSIMO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, para os efeitos do art. 40, § 1, da referida Lei Complementar, tendo em vista a relevância da matéria versada.

Brasília, 04 de setembro de 2023.

 JORGE RODRIGO ARAÚJO MESSIAS

ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

DESPACHO n. 00595/2023/GAB/CGU/AGU

NUP: 00407.018385/2019-15

INTERESSADOS: PROCURADORIA-GERAL FEDERAL - PGF

ASSUNTOS: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO

Excelentíssimo Senhor Advogado-Geral da União,

 Estou de acordo com o PARECER 0015/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU, da lavra do Consultor da União, Dr. Túlio de Medeiros Garcia.

Nestes termos, submeto as manifestações desta Consultoria da União à análise de V. Exa, para que, em sendo acolhidas, sejam encaminhadas à elevada apreciação do Excelentíssimo Senhor Presidente da República para os fins dos artigos 40, §1º e art 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993.

Brasília, 04 de setembro de 2023.

 ANDRÉ AUGUSTO DANTAS MOTTA AMARAL

Advogado da União

Consultor-Geral da União

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO CONSULTORIA DA UNIÃO

PARECER n. 0015/2023/CONSUNIAO/CGU/AGU

NUP: 00407.018385/2019-15

INTERESSADOS: ASSESSORIA ESPECIAL DE DIVERSIDADE E INCLUSÃO DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO e PROCURADORIA-GERAL FEDERAL - PGF

ASSUNTOS: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO

DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ASSÉDIO SEXUAL E DEMAIS CONDUTAS QUE VIOLAM A DIGNIDADE SEXUAL. FIXAÇÃO DE PENA DE DEMISSÃO.

1.                RELATÓRIO

1.                                 A Assessora Especial de Diversidade e Inclusão da Advocacia-Geral da União encaminha-nos, por meio da Cota n. 00002/2023/ASSDI/AGU, o procedimento acima numerado. Nesse documento, solicita a análise desta Consultoria-Geral da União sobre a possibilidade de elaboração de um parecer jurídico, a ser firmado nos termos do art. 40 da Lei complementar 73/93, com o objetivo de esclarecer a aplicação das normas legais aos casos de assédio sexual, no âmbito da Administração Pública Federal, mais notadamente no aspecto disciplinar.

2.                                 No expediente, relata a recente promulgação da Lei n. 14.540, de 3 de abril de 2023, a qual “Institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal” . Bem como, a alteração legislativa introduzida pela Lei 14.612, de 3 de julho de 2023, inserindo punições pelas práticas de assédio sexual, moral e discriminação no Estatuto da Advocacia - Lei 8.906/1994.

3.                                 Noticia, ainda, a edição do Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98), com orientação a ser seguida por todos os órgãos de execução da Procuradoria-Geral Federal, o qual fixa pena de demissão para os casos de assédio sexual, além de trazer o conceito de assédio sexual para fins de aplicação das normas disciplinares.

4.                                 É o relatório.

2.                                 FUNDAMENTAÇÃO

2.1                              Delimitação da questão a ser tratada

5.                                 A questão colocada para análise pode ser assim enunciada: qual tratamento disciplinar deve ser conferido ao assédio sexual, praticado por servidor público federal, no seu exercício profissional ou a ele relacionado? Dizendo de forma mais didática: é possível predefinir a pena - e qual seria ela - a ser aplicada, uniformemente, a todos os casos de assédio sexual apurados na âmbito da Administração Pública Federal?

6.                                 Não só para responder a essa pergunta, mas também para definir o real alcance da questão ora colocada, essencial compreender o conceito de assédio sexual adotado pela autoridade consulente em sua solicitação. É dizer, necessário delimitar quais comportamentos ilícitos, no entendimento do expediente encaminhado à CGU/AGU, deverão ser objeto de análise neste opinativo.

7.                                 O citado Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98), firmado pela Procuradoria-Geral Federal, fixa, em suas conclusões, o seguinte conceito de assédio sexual.

"A  prática  de  assédio  sexual,  compreendida  de  forma  ampla  como   quaisquer   condutas   de   natureza sexual manifestadas no exercício do cargo, emprego ou função pública ou em razão dele, externada por atos, palavras, mensagens, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra a sua vontade, independentemente do gênero, que causem constrangimento e violem sua liberdade sexual, sua intimidade, sua privacidade, sua honra e sua dignidade, afrontam a moralidade administrativa, o decoro, a dignidade da função pública e da instituição, caracterizando-se como transgressão disciplinar de natureza gravíssima."

8.                                 Por seu turno, a Lei n. 14.540, de 3 de abril de 2023, também mencionada pela Sra. Assessora Especial de Diversidade e Inclusão como um dos motivos para a provocação por ela encaminhada, trata da "prevenção e enfrentamento ao assédio sexual e demais crimes contra a dignidade sexual e à violência sexual."

9.                                     Por fim, a recém editada Lei n. 14.612, de 3 de julho de 2023 - também referida na Cota n. 00002/2023/ASSDI/AGU - que alterou o Estatuto da Advocacia para incluir o inciso XXX e o § 2º ao artigo 34, da Lei nº 8.906/1994, passando a prever o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares, no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil, conceitua assédio sexual como:

II - assédio sexual: a conduta de conotação sexual praticada no exercício profissional ou em razão dele, manifestada fisicamente ou por palavras, gestos ou outros meios, proposta ou imposta à pessoa contra sua vontade, causando- lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual; (Incluído pela Lei n. 14.612, de 2023)

10.                             Como se vê, tanto o Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98), quanto a Lei n. 14.612, de 3 de julho de 2023 adotaram, expressamente, uma definição ampla da expressão assédio sexual, para incluir todas as condutas de conotação sexual ofensivas da dignidade e da liberdade sexual de outra pessoa.

11.                                  A Lei n. 14.540, de 3 de abril de 2023, por sua vez, já em sua ementa, novamente reproduzida em seu artigo 1º, alude ao assédio sexual e demais crimes contra a dignidade sexual e à violência sexual. O legislador optou, nesse caso, por remeter às definições do Direito Penal, para o qual o assédio sexual é um dos crimes contra a dignidade sexual e, nesse sentido, não esgota os comportamentos de cunho sexual tipificados criminalmente. Por essa razão, a Lei em comento faz referência não só aos demais crimes dessa natureza como também à própria violência sexual como objeto do Programa de Prevenção e Enfrentamento ali instituído. Essa opção fica ainda mais clara na leitura do artigo 3º, abaixo reproduzido.

Art. 3º Para a caracterização da violência prevista nesta Lei, deverão ser observadas as definições estabelecidas no Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e nas Leis nºs 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e 13.431, de 4 de abril de 2017.

12.                             Mesmo tendo adotado os conceitos da Lei Penal, não dúvidas sobre o alcance do Programa instituído pela Lei n. 14.540/2023. O objetivo é a prevenção e enfrentamento de todas as condutas ilícitas, todas as violências de natureza sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal.

13.                              Assim, deve ser objeto deste parecer o tratamento disciplinar a ser dado a toda e qualquer atitude com conotação sexual, praticada no exercício do cargo ou em razão dele, que viole a liberdade e a dignidade sexual de outra pessoa. Indo um pouco além, serão analisadas as possíveis condutas de natureza sexual praticadas no ambiente de trabalho, ou em razão do serviço, a fim de explicitar as penalidades disciplinares previstas para cada hipótese.

2.2                              O tratamento do assédio sexual e demais crimes contra a dignidade sexual na lei penal

14.                              Como visto no tópico anterior, o legislador brasileiro, em diferentes ocasiões, utilizou conceitos distintos para o termo assédio sexual. Ora mais amplo, abrangendo praticamente todas as condutas ofensivas da dignidade e liberdade sexual; ora mais restrito, como no caso do tratamento dado pelo Código Penal, em que o assédio sexual é apenas uma das condutas tipificadas no título dedicado aos crimes contra a dignidade sexual e no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual.

15.                              O Código Penal descreve o crime de assédio sexual no caput do seu artigo 216-A, incluído pela Lei n. 10.224/2001, nos seguintes termos:

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

16.                              Para a lei penal, portanto, a configuração do assédio sexual pressupõe a presença de três elementos: I) o constrangimento; II) o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual; III) a existência de superioridade hierárquica ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função, em relação à vítima.

17.                              Outras condutas que não apresentam esses elementos, mas, a depender das circunstâncias, podem ser enquadradas no conceito mais alargado de assédio sexual adotado pelo Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98) e pela Lei n. 14.612/2023, estão igualmente tipificadas penalmente. Porém, em outros dispositivos do Código Penal.

18.                              É o caso dos crimes de importunação sexual (art. 215-A), violação sexual mediante fraude (art. 215), estupro (art. 214), registro não autorizado de intimidade sexual (art. 216-B) e todos os tipos descritos no capítulo dos crimes sexuais contra vulnerável (Título VI, Capítulo II). Assim como nos crimes tipificados nos demais capítulos do referido Título VI. Todos crimes contra a dignidade sexual, valor maior e objeto de proteção por esses dispositivos, bem como, da própria Lei n. 14.540, de 3 de abril de 2023, cuja promulgação, em grande medida, motivou a edição do presente parecer.

2.3                              O tratamento do assédio sexual e das condutas ofensivas à dignidade sexual no Estatuto do Servidor Público

19.                              Fixado, brevemente, o tratamento penal conferido às condutas sexualmente ofensivas da dignidade e, em especial, da liberdade sexual, cumpre analisar como as normas legais disciplinares abordam a questão no âmbito do serviço público federal.

20.                              A Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, estatuiu o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Em seu Título VI, trata do regime disciplinar, prescrevendo, ao longo dos seus capítulos, deveres, proibições, penalidades e dispondo sobre acumulação de cargos. Reproduz, com algumas diferenças, disposições já presentes na Lei nº 8.027/1990, por sua vez fruto da conversão da Medida Provisória nº 159, de 15 de março de 1990. No Título V, denominado "Do Processo Administrativo Disciplinar", traz os aspectos procedimentais para apuração dos ilícitos administrativos e aplicação das penalidades previstas na lei.

21.                                  O artigo 117, da Lei n. 8.112/1990, relaciona os comportamentos proibidos aos servidores públicos. São eles (destaques acrescidos):

Art. 117. Ao servidor é proibido:

I - ausentar-se do serviço durante o expediente, sem prévia autorização do chefe imediato;

II - retirar, sem prévia anuência da autoridade competente, qualquer documento ou objeto da repartição; III - recusar a documentos públicos;

IV - opor resistência injustificada ao andamento de documento e processo ou execução de serviço; V - promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição;

VI - cometer a pessoa estranha à repartição, fora dos casos previstos em lei, o desempenho de atribuição que seja de sua responsabilidade ou de seu subordinado;

VII  - coagir ou aliciar subordinados no sentido de filiarem-se a associação profissional ou sindical, ou a partido político;

VIII  - manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o segundo grau civil;

IX   - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

X  - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário; (Redação dada pela Lei n. 11.784, de 2008) XI - atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;

XII - receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições; XIII - aceitar comissão, emprego ou pensão de estado estrangeiro;

XIV - praticar usura sob qualquer de suas formas; XV - proceder de forma desidiosa;

XVI  - utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares;

XVII  - cometer a outro servidor atribuições estranhas ao cargo que ocupa, exceto em situações de emergência e transitórias;

XVIII  - exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho;

XIX  - recusar-se a atualizar seus dados cadastrais quando solicitado. (Incluído pela Lei n. 9.527, de 10.12.97)

22.                              Ao dispor sobre as penalidades, o Estatuto do Servidor Público prescreve seis tipos, quais sejam, advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.

23.                              Conforme disposto no artigo 129, a advertência aplica-se aos casos de violação de proibição constante do art. 117, incisos I a VIII e XIX, e de inobservância de dever funcional previsto em lei, regulamentação ou norma interna, que não justifique imposição de penalidade mais grave. A suspensão, por sua vez, nos termos do artigo 130, deve ser aplicada em caso de reincidência das faltas punidas com advertência e de violação das demais proibições que não tipifiquem infração sujeita a penalidade de demissão, não podendo exceder de 90 (noventa) dias.

24.                              As hipóteses de aplicação da pena de demissão estão enumeradas no artigo 132, abaixo transcrito (destaques acrescidos):

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:

I - crime contra a administração pública; II - abandono de cargo;

III  - inassiduidade habitual;

IV - improbidade administrativa;

V  - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; VI - insubordinação grave em serviço;

VII - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem; VIII - aplicação irregular de dinheiros públicos;

IX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo; X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional; XI - corrupção;

XII - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas; XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.

25.                              A análise do disposto nos artigos 117 e 132, acima reproduzidos, permite uma primeira conclusão: à exceção do disposto no artigo 117, XIV (praticar usura sob qualquer de suas formas) e 132, VII (ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem), as demais proibições e hipóteses de demissão expressas na lei revelam a preocupação primordial do legislador de 1990 em proteger a coisa pública, no seu sentido patrimonial, e a moralidade administrativa.

26.                              Questões relacionadas à saúde mental, à salubridade do ambiente de trabalho, à liberdade e à dignidade sexual dos indivíduos não estavam na primeira página da pauta de preocupações.

27.                              A Convenção n. 190, da Organização Internacional do Trabalho, firmada apenas em 2001, foi "o primeiro tratado internacional a reconhecer o direito de todas as pessoas a um mundo de trabalho livre de violência e assédio, incluindo violência e assédio com base em gênero".[1] Somente naquele mesmo ano, por meio da Lei n. 10.224/2001, foi acrescido o artigo 216-A ao Código Penal Brasileiro, prescrevendo o crime de assédio sexual. E foi em 2018 que a Lei n. 13.718, de 24 de setembro, fez incluir o artigo 215-A no capítulo dos Crimes contra a Liberdade Sexual, tipificando como crime a importunação sexual. Até então, era tratada como mera contravenção penal, prevista no artigo 61[2], do Decreto-lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941 (somente se realizada em local público ou acessível ao público), e punida unicamente com multa. Também de 2018, a Lei n. 13.772, a qual tipificou o crime de Registro não Autorizado da Intimidade Sexual.

28.                              Não surpreende, portanto, a ausência de menção expressa a temas relacionados à prevenção e repressão do assédio e da violência - para além da violência física propriamente dita - no ambiente de trabalho, no capítulo da Lei n. 8.112/1990 dedicado a tratar das questões disciplinares.

29.                              O silêncio do legislador, entretanto, jamais foi, é ou poderá ser considerado óbice para a apuração e punição disciplinares de condutas ofensivas à dignidade e à liberdade sexual. Mas tem gerado insegurança jurídica, como relatado no parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98), tendo-se observado "divergências no enquadramento legal das condutas enquanto transgressão disciplinar, assim como na escolha das sanções aplicadas." Uma análise mais detida mostra, no entanto, que essa ausência de uniformidade de tratamento decorre mais de equívocos na aplicação da legislação do que propriamente da ausência de previsão específica.

30.                              O artigo 117, IX, encerra uma das hipóteses de proibição apenada com demissão, nos termos do artigo 132, XIII. Trata do valimento do cargo - entendido de forma ampla, podendo compreender emprego ou função - para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública. O proveito, no caso, pode ser de qualquer espécie, já que a lei não faz nenhum tipo de restrição. Assim, se o servidor se vale do cargo para perseguir algum benefício ou vantagem sexual, aviltando, por consequência óbvia, a dignidade da função pública, resta configurado o ilícito do artigo 117, IX, da Lei n. 8.112/1990. A pena de demissão é, por conseguinte, mandatória.

31.                              Enquadram-se nessa hipótese - mas não somente - os clássicos casos de assédio sexual, nos quais o agente se vale do seu cargo, da sua superioridade hierárquica, ascendência ou posição de destaque para constranger alguém, a fim de obter benefícios sexuais. Deve-se notar, entretanto, que para configuração do ilícito previsto no artigo 117, IX, da Lei n. 8.112/1990, os requisitos a serem preenchidos não são os mesmos do artigo 216-A do Código Penal.

32.                              Condutas mais bem descritas pelos demais tipos penais do Título VI, do Código Penal - Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual - podem, perfeitamente, se amoldar à hipótese do artigo 117, IX, do Estatuto do Servidor Público. Basta que o agente se tenha valido do cargo (emprego ou função) para cometer o ilícito.

33.                              Mesmo condutas atípicas podem configurar a hipótese do artigo 117, IX, da Lei n. 8.112/1990. Suficiente lembrar, mais uma vez, que o assédio sexual passou a ser crime tipificado no Código Penal apenas em 2001 e as leis que tipificaram como crime a importunação sexual e o registro não autorizado da intimidade sexual são de 2018.

34.                              Tendo sido a Lei n. 8.112 editada em 11 de dezembro de 1990 - e a Lei n. 8.027/1990 ainda anteriormente a ela - referidas condutas eram apenadas com demissão, antes mesmo de estarem descritas no Código Penal.

35.                              No mesmo sentido, a previsão do artigo 132, V, da Lei n. 8.112/1990, segundo a qual a pena de demissão deve ser aplicada nos casos de incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição. Conquanto semelhantes, são dois conceitos que não se confundem, embora sejam ambos capazes de descrever condutas violadoras da dignidade e liberdade sexuais. Segundo julgado do Superior Tribunal de Justiça, responsável por dar a palavra final na interpretação da legislação federal:

(...)

9. A "incontinência pública" não se confunde com "conduta escandalosa, na repartição". A primeira hipótese se refere ao comportamento de natureza grave, tido como indecente, que ocorre de forma habitual, ostensiva e em público. Nesse sentido: RMS n. 39.486/RO, relator Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 2/5/2014; AgRg no RMS n. 27.998/AP, relator Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, DJe de 15/10/2012. a segunda modalidade pressupõe aquela conduta que, embora também ofenda a moral administrativa, pode ocorrer de forma pública ou às ocultas, reservadamente, mas que em momento posterior chega ao conhecimento da Administração.

(...)[3]

36.                              Nesse mesmo julgamento, em que se analisava o caso de um professor de uma escola federal demitido "por, dolosamente, ter produzido e armazenado, sem consentimento, vídeos de alunas, servidoras e empregada terceirizada" , o STJ reafirmou seu o entendimento segundo o qual (destaques acrescidos):

11. A jurisprudência desta Corte também tem-se orientado no sentido de afastar a eventual ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, quando a pena de demissão do serviço público for a única punição prevista em lei pela prática das infrações disciplinares praticadas pelo servidor" (MS n. 21.937/DF, relatora p/ acórdão Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 23/10/2019). Nesse mesmo sentido: RMS 34.405-AgR, relator Ministro EDSON FACHIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 31/10/2018; MS n. 20.963/DF, relator Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 8/9/2020.[3]

37.                              Quanto a esse último ponto, o referido Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98) merece ser transcrito, pela precisão no tratamento do tema:

"56. Ocorre que esse juízo de ponderação não se aplica para os casos em que se configurarem as hipóteses previstas no artigo 132 da Lei n. 8.112, de 1990, e artigo 5º, inciso I, e parágrafo único, inciso I, da Lei 8.027, de 1990, para os quais a lei prevê expressamente a aplicação da demissão, sendo compulsória sua incidência.

57. A Advocacia-Geral da União manifestou esse entendimento nos pareceres GQ 177 e GQ 193, aprovados pelo Presidente da República e, portanto, vinculantes para toda a Administração Pública Federal, nos termos do Art. 40 da Lei Complementar n.º 73/1993, senão vejamos:

Parecer AGU n. GQ 177, vinculante

Ementa: Verificadas a autoria e a infração disciplinar a que a lei comina penalidade de demissão, falece competência à autoridade instauradora do processo para emitir julgamento e atenuar a penalidade, sob pena de nulidade de tal ato (...).10. (...) Apurada a falta a que a Lei nº 8.112, arts. 132 e 134, cominam a aplicação da pena de demissão ou de cassação de aposentadoria ou disponibilidade, esta medida se impõe sem qualquer margem de discricionariedade de que possa valer se a autoridade administrativa (...) para omitir-se na apenação.

Parecer AGU n. GQ 183, vinculante

Ementa: É compulsória a aplicação da penalidade expulsiva, se caracterizada infração disciplinar antevista no art.132 da Lei n. 8.112/90, de 1990. (...)7. Apurada a falta a que a Lei n. 8.112, de 1990, arts. 129, 130, 132, 134 e 135, comina a aplicação de penalidade, esta medida passa a constituir dever indeclinável, em decorrência do caráter de norma imperativa de que se revestem esses dispositivos. Impõe-se a apenação sem qualquer margem de discricionariedade de que possa valer-se a autoridade administrativa para omitir-se nesse mister. (...)8. Esse poder é obrigatoriamente desempenhado pela autoridade julgadora do processo disciplinar (...).

58.  O STF e o STJ possuem julgados em sentido convergente ao indicado nos pareceres vinculantes da AGU, quanto à impossibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade para as hipóteses em que a lei prevê a aplicação da pena de demissão: STF, MS 26.023; STJ, MS 15.690, 15.951, 15.437, 15.517, 15.175, 13.169, 12.689, 10.987, 16.567, 10.420, 9.116 e8.361, RMS 32.573, 20.537, 33.281 e 30.455.

59. Vale, ainda, destacar que o STJ, com fundamento em sua jurisprudência reiterada, firmou a seguinte tese:

4) A administração pública, quando se depara com situação em que a conduta do investigado se amolda às hipóteses de demissão ou de cassação de aposentadoria, não dispõe de discricionariedade para aplicar pena menos gravosa por se tratar de ato vinculado.

Assim, uma vez tenha a autoridade julgadora chegado à conclusão de que a conduta do servidor se amolda ao disposto no artigo 132 da lei n. 8.112, de 1990, e artigo 5º, inciso I, parágrafo único, inciso I, da Lei n. 8.027, de 1990, não espaço para discricionariedade na fixação da pena, que deverá ser aquela descrita na disposição legal, ou seja, demissão."

38.                              A mesma premissa fixada para o artigo 132, XIII, c/c artigo 117, IX, vale para a aplicação do artigo 132, V, da Lei

n. 8.112/1990. A tipicidade ou não da conduta é irrelevante para a configuração do ilícito administrativo. Se o ato atenta contra a moralidade administrativa, a ponto de causar escândalo - como são todas as condutas que violam gravemente a dignidade, a liberdade, a privacidade e a intimidade sexuais - deve ser capitulado no artigo 132, V, e apenado com demissão. Inclusive, se praticado fora do ambiente do trabalho, como ressaltado pelo Ministro Og Fernandes, em trecho do voto condutor de acórdão do Superior Tribunal de Justiça, abaixo transcrito.[4]

"A grave afronta aos princípios inerentes ao desempenho do cargo público, tais como a moralidade e a proibição de conduta de incontinência pública e escandalosa, mesmo na via privada, pode sujeitar o servidor à demissão, pois, no entendimento de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:

"(...) é verdade que a vida privada do funcionário, na medida em que afete o serviço, pode interessar à Administração, levando-a a punir disciplinarmente a má conduta fora do cargo. Daí alguns estatutos incluírem, entre os deveres funcionais, o de proceder na vida pública e privada na forma que dignifique a função pública, e punirem com demissão o funcionário que for convencido de incontinência pública e escandalosa. Pela mesma razão, alguns consideram que o procedimento irregular, punível com demissão, pode abranger o mau procedimento na vida privada ou na vida funcional." (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17.ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 526)

A incontinência pública, ensina JOSÉ ARMANDO DA COSTA, pode ser praticada fora do âmbito do trabalho, tornando-se apta a causar a demissão do servidor quando revestida de publicidade, escândalo e gravidade. A propósito:

"A prática de incontinência pública e conduta escandalosa nas dependências da repartição constituem, nos termos do art. 132, inciso V, da Lei nº 8.112/1990, justo título de demissão do serviço público. Age com incontinência pública o servidor que, em sua vida de relação com os demais membros da coletividade, comporta-se de forma indecente e com espetaculosidade. A ostentação espalhafatosa em público, permeada por cenas ridículas e indecorosas, mesmo fora do âmbito de trabalho, acarreta profundos reflexos em detrimento da credibilidade da função pública exercida pelo servidor incontinente. Aludindo a essa espécie delitual disciplinar, assinala o pranteado jurista Alberto Bonfim:

'Incontinência é a conduta da pessoa que não se contém dentro dos limites da decência. Todo ser humano que vive em sociedade há que se comportar de forma a não merecer censura dos seus semelhantes. Mas tal procedimento, para ser punido, exige os requisitos de publicidade e de escândalo, conforme o texto estatutário. Um ato praticado às ocultas, sem repercussão pública, não constitui esse "ictus" administrativo.' (O Processo Administrativo. 9. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1967, p. 62)

O comportamento público ostentoso e aparatoso requer, para a configuração de legítima causa demissória, não apenas os requisitos da publicidade e da escandalização, como também uma certa dimensão de gravidade. Se, por exemplo, determinado servidor que não tem costume de ingerir bebidas alcoólicas chegar, em circunstância fortuita, a embriagar-se em público (evento social bem concorrido) e fazer alguns galanteios inoportunos, certamente que não se houve de modo cauteloso e contido. Porém, tal ocorrência, em razão de sua pouca gravidade, não poderá jamais constituir motivo de demissão.(COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2009, pp. 504/505)

2.4                              A independência das instâncias administrativa, civil e penal. Relevância do conceito de assédio sexual para fins de apuração disciplinar das condutas ilícitas de conteúdo sexual

39.                              A Lei n. 8.112/1990, dispõe, em seu artigo 125:

Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

40.                              As instâncias são, pois, independentes e, em tese, um ilícito administrativo pode ou não configurar um ilícito penal e vice-versa. A única hipótese de comunicação legal entre elas está prevista no artigo 126, da Lei n. 8.112/1990:

Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

41.                              Como bem lembrado no referido Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98), o julgado do Supremo Tribunal Federal ali transcrito não deixa dúvida quanto ao entendimento da Corte sobre o tema:

"As instâncias civil, penal  e  administrativa  são  independentes,  sem  que  haja  interferência  recíproca  entre seus respectivos julgados, ressalvadas as hipóteses de absolvição por inexistência de fato ou de negativa de autoria. Precedentes: MS 34.420-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 19/05/2017; RMS 26951- AgR,Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Dje de 18/11/2015; e ARE 841.612-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 28/11/2014. (A G .REG. NO HABEAS CORPUS 148.391. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, 23/02/2018)"

42.                              À exceção do disposto no artigo 126, transcrito acima, o processo disciplinar não guarda relação de dependência com o processo penal, devendo caminhar de forma independente e desvinculada da persecução criminal. Vale transcrever as pertinentes conclusões do Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98):

"38. Desta feita, as autoridades administrativas têm completa autonomia de atuação, observados os princípios e normas constitucionais e legais, para investigar os fatos e aplicar as sanções de natureza administrativa, bem como para adotar as providências inerentes à responsabilização na esfera civil, se for o caso. Quando os fatos apurados indiquem também a prática de crime previsto na legislação penal, todos os elementos devem ser remetidos para análise dos órgãos de persecução penal, a quem incumbe avaliá-los sob a perspectiva criminal."

43.                              Como demonstrado no tópico anterior, uma conduta atípica pode, perfeitamente, configurar um ilícito administrativo, passível, inclusive, de demissão. Mesmo quando uma conduta é, a um só tempo, um ilícito penal e administrativo, não são os elementos do tipo penal que importam para fins de aplicação de penalidade disciplinar, mas sim aqueles contidos na norma administrativa.

44.                              Não se desconhece, nem se ignora, a enorme carga simbólica, descritiva e normativa que o termo assédio sexual carrega. Ele é amplamente utilizado em diversos diplomas normativos, bem como em documentos produzidos por órgãos públicos, entidades não governamentais e órgãos multilaterais, estando presente em praticamente todas as cartilhas de combate à violência laboral, contra a mulher ou contra crianças e adolescentes. Quase sempre com uma conotação mais ampla do que a conferida pela norma penal. A título ilustrativo, a Organização Internacional do Trabalho define assédio sexual como (no original, em inglês):

“Sexual harassment” is defined as any behaviour of a sexual nature that affects the dignity of women and men, which is considered as unwanted, unacceptable, inappropriate and offensive to the recipient, and that creates an intimidating, hostile, unstable or offensive work environment.

“Quid pro quo” (this for that) sexual harassment is committed when an employer, supervisor, manager or co- worker, undertakes or attempts to influence the process of recruitment, promotion, training, discipline, dismissal, salary increment or other benefit of an existing staff member or job applicant, in exchange for sexual favours.[5]

45.                              Em tradução livre:

Assédio sexual é definido como qualquer comportamento de natureza sexual que afete a dignidade de mulheres e homens, que seja considerado indesejado, inaceitável, impróprio e ofensivo para o destinatário, e que crie um ambiente de trabalho intimidante, hostil, instável ou ofensivo. O assédio sexual “Quid pro quo” (isto por aquilo ou assédio sexual por chantagem) é cometido quando um empregador, supervisor, gestor ou colega de trabalho, empreende ou tenta influenciar o processo de recrutamento, promoção, formação, disciplina, dispensa, aumento salarial ou outro benefício de um funcionário existente ou candidato a emprego, em troca de favores sexuais.

46.                              O mesmo documento, a seguir, faz o esclarecimento do que não configura assédio sexual:

What is not sexual harassment:

Occasional compliments that are socially and culturally acceptable and appropriate.

  Any interaction of a sexual nature which is consensual (except for those prohibited by the law such as sexual intercourse with children), welcome or reciprocated.[5]

47.                              Também, em tradução livre:

O que não é assédio sexual:

Elogios ocasionais que sejam social e culturalmente aceitáveis e apropriados;

  Qualquer interação de natureza sexual consensual (exceto aquelas proibidas por lei, como relações sexuais com crianças), bem-vinda ou retribuída.

48.                              Nesse sentido, compreende-se a escolha feita pelo Parecer n. 00001/2023/PG-ASSEDIO/SUBCONSU/PGF/AGU (seq. 98) em tomar o conceito amplo de assédio sexual como referência principal na descrição dos comportamentos violadores da dignidade sexual e puníveis com pena de demissão.

49.                              Se a norma disciplinar, contudo, não alude especificamente a nenhum tipo de comportamento de natureza sexual, mas pune a utilização do cargo para obtenção de vantagens indevidas, assim como a incontinência pública e as condutas escandalosas, são os elementos descritivos desses comportamentos que vão interessar, em última análise, para a correta aplicação da norma administrativa disciplinar.

50.                              Desse modo, devem as autoridades administrativas verificar, no comportamento do servidor sob exame, a existência dos elementos descritivos das condutas previstas nos artigos 117, inciso IX e 132, inciso V. São esses elementos que irão determinar a licitude ou ilicitude da conduta, bem como a penalidade a ser aplicada.

2.5                              Dos elementos configuradores dos ilícitos dos artigos 117, IX e 132, V, da Lei n. 8.112/1990, nas condutas ofensivas à dignidade sexual

51.                              Fixado o entendimento de que, na apuração das condutas potencialmente ofensivas à dignidade sexual, uma vez presentes os elementos descritivos dos comportamentos vedados, nos artigos 117, IX e 132, V, da Lei n. 8.112/1990, a pena de demissão se impõe, necessário buscar a fixação de balizas mais concretas para orientar a aplicação das normas legais.

52.                              O artigo 117, IX, dispõe:

Art. 117. Ao servidor é proibido (...)

IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

53.                              O valimento do cargo, portanto, é elemento central na configuração do tipo disciplinar. A conduta do agente deve, de alguma forma, guardar relação com o exercício irregular dos poderes ou prerrogativas do cargo ou função. Não é necessário que haja superioridade hierárquica em relação à vítima, mas o cargo deve exercer um papel relevante na dinâmica da ofensa.

54.                              Enquadra-se nesse dispositivo a conduta descrita no crime de assédio sexual, do artigo 216-A, do Código Penal. A diferença fundamental é que, para a configuração do tipo penal em questão, a hierarquia ou a ascendência funcional é elemento essencial. No caso do valimento do cargo, não é necessário que uma delas esteja presente.

55.                              É possível imaginar outras hipóteses em que o agente se utiliza de seu cargo ou função para atingir a dignidade sexual de outra pessoa. Por exemplo, chantageando alguém com a possível divulgação de informação que ele obteve no exercício do cargo ou da função. Ou o servidor que tem acesso às câmeras de segurança e as utiliza para gravar os corpos das vítimas, com o objetivo de se satisfazer sexualmente.

56.                              Não é necessário que o agente tenha êxito em obter a vantagem sexual perseguida. Basta que ele se tenha utilizado do cargo na tentativa de obter algum benefício de natureza sexual. Trata-se de um ilícito de mera conduta, não sendo necessária a consumação do ato ou da interação sexual para surgir a necessidade de punição. Desnecessária, de igual modo, a reiteração. É suficiente um único ato indesejado, inaceitável, impróprio ou ofensivo para o destinatário, que ultrapasse as balizas de um simples elogio, social e culturalmente aceitável, e desde que fique clara a utilização indevida do cargo para esse fim.

57.                              Nesse ponto, em específico, a ausência de consentimento da vítima é ponto fundamental para configuração do ilícito administrativo disciplinar. Com efeito, não se configura proveito pessoal indevido a interação de natureza sexual consensual, bem- vinda ou retribuída, entre pessoas adultas e com plena capacidade de consentir, como reconhece a própria OIT.

58.                              Conquanto não se exija a reiteração das condutas para a configuração do assédio sexual - no caso, do valimento do cargo - não se desconhece que a insistência do agente, mesmo em face da ausência de consentimento da vítima, configura uma circunstância agravante e de grande relevância probatória. Em certas situações, pode não ser fácil determinar o caráter ilícito de uma conduta pontual, mas a repetição do atos não consentidos colabora para tornar evidente a ilicitude.

59.                              Importante pontuar, ainda: Queausência de consentimento não pressupõe a necessidade de negativa explícita. Se a vítima não consentiu expressamente, não retribuiu ou não demonstrou, claramente, que a interação é bem-vinda, não consensualidade.

60.                              O artigo 132, V, por sua vez, dispõe:

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:

(...)

V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;

61.                              Nesse caso, não é necessária a utilização do cargo. Desde que a conduta ofenda a moralidade - e a moralidade administrativa em especial - com tal gravidade que a conduta se mostre escandalosa.

62.                             Enquadram-se nessa hipótese, indubtavelmente, todas as condutas descritas no Título VI - Dos crimes contra a dignidade sexual, do Código Penal. Se uma conduta de natureza sexual apresenta o mais alto grau de reprovabilidade social,   a ponto de ser tipificada penalmente, é evidente que a sua consumação ofende a moralidade administrativa de maneira grave e, portanto, escandalosa, nos termos do artigo 132, V, da Lei n. 8.112/1990.

63.                              Reafirma-se, no ponto, a independência das instâncias administrativa e penal. A configuração da conduta administrativamente escandalosa, na hipótese do parágrafo anterior, independe da persecução criminal. Suficiente que o ato descrito, em tese, em um daqueles tipos penais, corresponda à conduta do agente, conforme verificado pela autoridade administrativa, para a instauração do procedimento disciplinar e aplicação da penalidade cabível.

64.                              Mesmo condutas não tipificadas penalmente podem ser consideradas escandalosas. Para tanto, devem apresentar um elevado grau de reprovabilidade social, ofendendo gravemente a moralidade administrativa. Nesses casos, entretanto, recomenda-se cautela ainda maior na apuração dos fatos, de modo a demonstrar em que medida a conduta analisada se mostra, de fato, escandalosa ou se enquadra como incontinência pública, para os fins de determinar a aplicação da pena de demissão.

3.                 CONCLUSÕES

65.                              As condutas ofensivas à dignidade sexual, praticadas no ambiente de trabalho ou que guardem alguma relação com o serviço, são puníveis com pena de demissão, nos termos dos artigo 132, XIII c/c 117, inciso IX e do artigo 132, inciso V, da Lei n. 8.112/1990.

66.                              Configura o tipo administrativo do artigo 117, IX, da Lei n. 8.112/1990, a conduta do agente tendente a obter algum proveito de natureza sexual, por meio de interações não consentidas, indesejadas, inaceitáveis, impróprias ou ofensivas para o destinatário e que guarde relação com o exercício irregular dos poderes ou prerrogativas do cargo ou função. Não é necessário que haja superioridade hierárquica em relação à vítima, mas o cargo deve exercer um papel relevante na dinâmica da ofensa.

67.                              Configura o tipo administrativo do artigo 132, V, a incontinência pública ou a conduta escandalosa do servidor, que ofende de forma gravíssima a moralidade administrativa. Enquadram-se nessa hipótese as condutas descritas no Título VI - Dos crimes contra a dignidade sexual, do Código Penal, bem como todas as condutas de natureza sexual que sejam, ou venham a ser, tipificadas pelas demais leis penais. Se o Direito Penal, que é a resposta última do Estado, criminaliza determinada conduta por considerá-la ofensiva à dignidade sexual, significa que ela é, consequentemente, escandalosa, nos termos do artigo 132, V, da Lei n. 8.112/1990.

À consideração superior. Brasília, 04 de setembro 2023.

TULIO DE MEDEIROS GARCIA

Procurador da Fazenda Nacional Consultor da União

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Notas

1.    ^ https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_831984/lang--pt/index.htm. Acesso em 31/08/2023.

2.    ^ Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:Pena multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

3.    a, b REsp 2006738/PE. Relator Ministro Sérgio Kukina. Primeira Turma. 14/02/2023. Publicação: DJe 27/02/2023

4.    ^ AgRg no RMS 27.998/AP. Relator Ministro Og Fernandes. Sexta Turma. 18/09/2012. Publicação: DJe 15/10/2012

5.    a, b https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---asia/---ro-bangkok/---ilo-hanoi/documents/publication/wcms_371182.pdf. Acesso em 04/09/2023

Este texto não substitui o publicado no DOU de 6.9.2023 - Edição extra