Presidência
da República |
MENSAGEM Nº 424, DE 29 DE MAIO DE 2002.
Senhor Presidente do Senado Federal,
Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do § 1o do art. 66 da Constituição Federal, decidi vetar integralmente, por inconstitucionalidade, o Projeto de Lei no 137, de 2001 (no 3.614/00 na Câmara dos Deputados), que "Dispõe sobre a responsabilidade civil das empresas locadoras de veículos em acidentes de trânsito e dá outras providências".
Ouvido, o Ministério da Justiça assim se manifestou:
"A proposição legislativa em questão tem por fim disciplinar a responsabilidade civil das empresas locadoras de veículos em acidentes de trânsito. Nesse desiderato, dispõe acerca do conceito de "locadora de veículo" para os efeitos desta Lei, as pessoas jurídicas cuja responsabilidade civil deve recair, a obrigatoriedade de contratação de seguro pelas locadoras e, ainda, o valor da indenização devida à vítima na hipótese de danos pessoais decorrentes de acidente de trânsito envolvendo veículo locado.
Infere-se do disposto acima que a responsabilidade civil na locação de veículos, deduzida na medida projetada, assenta-se na teoria da culpa, uma vez que o art. 3o e seu parágrafo único dispõem:
"Art. 3o A locadora responderá pelos danos pessoais causados a terceiros, produzidos na condução do veículo locado, desde que comprovada sua culpa ou dolo na ocorrência do evento danoso.
Parágrafo único. Não existindo culpa ou dolo da locadora de veículo, a responsabilidade civil será daquele que tiver dado causa ao evento danoso."
Significa dizer que a vítima do dano causado por veículo locado terá que demonstrar os elementos que concorreram para o ato culposo da locadora para o fim de ressarcimento em juízo, ou seja, à vítima recairá o onus probandi da culpa da locadora.
Entretanto, tal disposição objeta-se ao entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal e consolidado na súmula no 492, verbis:
"A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos causados a terceiro, no uso do carro locado."
Segundo observa o Ministro Barros Monteiro, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento proferido nos autos do Recurso Especial nº 33.055-9, de 1994:
"A asserção contida no supracitado verbete sumular baseia-se em três decisões do Supremo Tribunal Federal havidas nos anos de 1966 (RTJ 37/594), 1967 (RTJ 41/796) e 1968 (RTJ 45/65). Em todas elas, a Corte Suprema não abandonou o conceito de culpa como fundamento da responsabilidade civil da empresa locadora. Todavia, no último deles, o eminente Relator, Ministro Evandro Lins, desenvolveu uma linha de pensamento evoluída em relação aos julgados precedentes. A par da menção feita ao estatuído no art. 159 do Código Civil, S. Exa. reportou ao art. 1.521 do mesmo diploma legal, atribuindo-lhe interpretação nitidamente extensiva, e, ainda, às disposições do Código Nacional de Trânsito, que responsabilizam igualmente os proprietários dos veículos e seus condutores. Ao aludir ao art. 1.521 do CC, o Sr. Ministro Relator considerou que o decisório então recorrido lhe dera razoável e construtiva interpretação, "atendendo a uma situação nova criada pelo desenvolvimento industrial e comercial do país".
Acenou, nesse passo, com a adoção da teoria do risco-criado ou do risco-proveito, a que se referiu o emérito Prof. Alvino Lima (Culpa e Risco, págs. 347 e 351, ed. 1960). Segundo o saudoso mestre das Arcadas, "vivemos em uma sociedade cada vez mais complexa e que exige desenvolvimento da ação humana; as relações obrigatórias são funções das relações econômicas e sociais e quanto mais estas se intensificam mais aquelas se desenvolvem. O conceito é do notável Josserand, referindo-se à obrigação de segurança que tácita ou expressamente deve existir nos contratos, mas que se aplica às relações extracontratuais. Se a autonomia da vontade não pode deixar de sofrer restrições no domínio do próprio contrato, para assegurar o direito das partes, com mais força de razão a vontade deve ceder terreno aos princípios que impõem a segurança jurídica nas relações extracontratuais" (ob. citada, págs. 344-345)."
Nessa esteira de raciocínio, assevera, ainda, o Ministro Barros Monteiro apud José de Aguiar Dias, que "em matéria de automóveis, a doutrina objetiva vem fazendo constantes progressos, conforme exemplificam as legislações da Dinamarca, Áustria, Alemanha e Itália (Da Responsabilidade Civil, v. I, pág. 92, ed. 1994). Maria Helena Diniz, por sinal, ressalta ainda que "a co-responsabilidade da empresa locadora de carros, ou seja, a solidariedade passiva na composição do prejuízo causado pelo locatário a terceiro não se liga à idéia de culpa". Assim sendo prossegue "consagrada está, em nossa jurisprudência, a responsabilidade objetiva do locador, tenha ele agido com culpa ou não (Julgado dos TJRS, Jurisprudência, 33:414)" (Curso de Direito Civil Brasileiro, 7o. vol. Responsabilidade Civil, pág. 362, 4ª ed.)". Assim, conclui, "ganha terreno, portanto, a doutrina objetiva, arrimada no risco: aquele que aufere proveito com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommoda)".
Resta evidente, pois, a adoção da responsabilidade civil objetiva pela doutrina e jurisprudência, abandonando-se a teoria da culpa, ou subjetiva, abraçada pelo Código Civil de 1916. A maior prova disso está refletida no novo Código Civil, ao dispor, no art. 927, parágrafo único, que "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
Como ensina Cáio Mário da Silva Pereira (Stoco, Rui. Tratado de responsabilidade civil: responsabilidade civil e sua interpretação doutrinária e jurisprudencial. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 109), a aplicação da teoria da culpa perde cada vez mais espaço porque se mostra inadequada para cobrir todos os casos de reparação, ante a multiplicação das oportunidades e das causas de danos.
No caso em tela, ao pretender o legislador que a responsabilidade civil das locadoras de automóveis seja orientada com base na teoria da culpa, propõe um entendimento completamente dissociado do difundido pelos pretórios e pela doutrina. Nesse aspecto, não é inconseqüente dizer que a proposta legislativa em análise representa um retrocesso ao tema da responsabilidade civil, posto que alberga uma concepção doutrinária já combatida, e porque não dizer superada, nos dias atuais.
Outra disposição no projeto que nos causou estranheza está inserta no art. 4o e seu parágrafo único, assim redigidos:
"Art. 4o Sem prejuízo do disposto em leis especiais, a locadora é obrigada a segurar os veículos de sua propriedade quanto à responsabilidade civil por danos pessoais causados a terceiros em acidente de trânsito até o limite da indenização estipulada nesta Lei.
Parágrafo único. Os danos pessoais previstos neste artigo referem-se aos prejuízos causados à pessoa da vítima, compreendidos os danos pessoais de ordem patrimonial, moral ou estético."
Evidencia-se do artigo supratranscrito que o legislador pretende instituir mais uma hipótese de seguro obrigatório, como aqueles previstos no art. 20 do Decreto-lei no 73, de 21 de novembro de 1966. Contudo, parece-nos discutível a legalidade desse novo seguro, uma vez que o dispositivo antes mencionado prevê, na alínea "b", o seguro obrigatório de "responsabilidade civil dos proprietários de veículos automotores de vias terrestre ...". Não é despiciendo salientar que a citada alínea foi acrescida ao art. 20, por meio da Lei no 6.194, de 19 de dezembro de 1974, que "Dispõe sobre o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não".
Conforme dispõe o art. 4o da Lei do Seguro Obrigatório, "a indenização no caso de morte será paga, na constância do casamento, ao cônjuge sobrevivente; na sua falta, aos herdeiros legais. Nos demais casos, o pagamento será feito diretamente à vítima na forma que dispuser o Conselho Nacional de Seguros Privados".
Ora, se já existe preceito legal dispondo que os proprietários de veículos automotores são obrigados a contratarem um seguro com fim específico de cobrir os danos causados a terceiros (vítimas) em acidentes de trânsito, não é crível a instituição de outro seguro para resguardar o mesmo objeto e interesse."
Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.
Brasília, 29 de maio de 2002.