Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DESPACHO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Vide ACO 1100

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

PROCESSO Nº 00400.002203/2016-01

INTERESSADO: Casa Civil da Presidência da República

Parecer nº GMF - 05 (*)

Adoto, para os fins do art. 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, o anexo PARECER N. 0001/2017/GAB/CGU/AGU e submeto-o ao EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA, para os efeitos do art. 40 da referida Lei Complementar, tendo em vista a relevância da matéria versada.

Em 19  de   julho  de 2017

 GRACE MARIA FERNANDES MENDONÇA
Advogada-Geral da União

___________
(*) A respeito deste Parecer o Excelentíssimo Senhor Presidente da República exarou o seguinte despacho. "
Aprovo. Em 17-VII-2017"

PARECER N. 001/2017/GAB/CGU/AGU

PROCESSO: 00400.002203/2016-01

INTERESSADO: CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

I. O Supremo Tribunal Federal, no acórdão proferido no julgamento da PET 3.388/RR, fixou as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, as quais constituem normas decorrentes da interpretação da Constituição e, portanto, devem ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas.

II. A Administração Pública Federal, direta e indireta, deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, às condições fixadas na decisão do Supremo Tribunal Federal na PET 3.388/RR, em consonância com o que também esclarecido e definido pelo Tribunal no acórdão proferido no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED 3.388/RR).

Exma. Sra. Advogada-Geral da União,

Um dos temas mais questionados em relação à atuação desta Advocacia-Geral da União diz respeito à edição da Portaria AGU n. 303, de 2012. O ato normativo é alvo de críticas não apenas em relação à sua validade, levando em consideração o seu conteúdo material, mas também à sua eficácia, tendo em vista as dúvidas que, desde a sua edição e especialmente em razão da série de atos posteriores que suspenderam os seus efeitos, sempre foram suscitadas em torno de sua aplicabilidade e efetividade.

A Portaria AGU n. 303, de 16 de julho de 2012, foi editada com o conhecido propósito de normatizar a atuação das unidades da Advocacia-Geral da União quanto à interpretação e aplicação das denominadas salvaguardas institucionais fixadas pelo Supremo Tribunal Federal na decisão proferida na Petição n. 3.388 (“caso Raposa Serra do Sol”) (1), de modo a determinar a sua observância e aplicação uniforme por parte dos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal nos processos de demarcação de terras indígenas(2).

Alvo de contestações logo no início de sua vigência(3), a portaria teve seus efeitos suspensos pela Portaria AGU n. 308, de 25 de julho de 2012, e, posteriormente, em razão da oposição de diversos embargos de declaração ao acórdão do STF na PET n. 3.388/RR, a Portaria AGU n. 415, de 17 de setembro de 2012, fixou o termo inicial de sua vigência para o dia seguinte ao da publicação do acórdão que então ainda viria a ser proferido nos referidos embargos(4).

Após o julgamento e a publicação do acórdão do STF nos embargos de declaração(5), foi editada a Portaria AGU n. 27, de 07 de fevereiro de 2014, a qual determinou à Consultoria-Geral da União e à Secretaria-Geral de Contencioso a análise da adequação do conteúdo da Portaria AGU n. 303/2012 aos termos da decisão final proferida pelo Tribunal(6). A partir de então, instaurou-se a controvérsia – a qual envolveu diversos órgãos da Administração Pública, especialmente a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e da Advocacia-Geral da União, especificamente a Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI (PFE/FUNAI), a Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça (CONJUR/MJ/CGU/AGU), a Secretaria-Geral de Contencioso e a Consultoria-Geral da União – sobre a vigência e a eficácia da portaria em questão(7). Diversos processos chegaram a ser abertos para tratar dessa controvérsia(8) e, em alguns dos posicionamentos que visaram solucionar a divergência, chegou a prevalecer a tese de que, após a apreciação definitiva do STF no julgamento dos embargos de declaração, a Portaria AGU n. 303 estaria em vigor e com plena eficácia.

Porém, em 11 de maio de 2016, o Advogado-Geral da União, por meio do Despacho n. 358/2016/GABAGU/AGU(9), estabeleceu que, enquanto os estudos requeridos por meio da Portaria AGU n. 27/2014 não fossem concluídos, a Portaria AGU n. 303/2012 deveria permanecer com sua eficácia suspensa.

A subsistência dessa controvérsia no âmbito da Advocacia-Geral da União chegou a reverberar no Supremo Tribunal Federal. Alguns Ministros se pronunciaram sobre o tema em julgamentos sobre processos envolvendo a demarcação de outras terras indígenas. Na maioria das vezes, exigiram uma solução para a questão, no sentido de se pacificar o tema de acordo com o que decidido pela Corte na PET n. 3.388/RR. Nos debates ocorridos na apreciação do RMS n. 29.087/DF, o Ministro Celso de Mello concluiu de modo muito contundente:

“Altamente conveniente, desse modo, que o eminente Advogado-Geral da União restabeleça a vigência da Portaria AGU n. 303/2012, suspensa desde a edição da Portaria AGU n. 308/2012 e posteriores alterações, em ordem a adequar ao julgamento plenário da PET 3.388/RR a atuação dos órgãos jurídicos da FUNAI e da própria União Federal, sempre que se tratar de demarcação administrativa de terras indígenas”.

Em razão de todos os problemas relacionados à forma da Portaria AGU n. 303/2012, faz-se premente e necessário que o seu conteúdo normativo, que simplesmente reproduz a decisão do STF na PET n. 3.388/RR, seja incorporado por parecer jurídico emanado desta Advocacia-Geral da União, o qual, uma vez aprovado pelo Presidente da República, possa ter os devidos efeitos vinculantes em relação a todos os órgãos da Administração Pública Federal.

O presente parecer, elaborado com base nos artigos 40 e 41 da Lei Complementar n. 73, de 1993(10), para ser submetido à aprovação do Exmo. Sr. Presidente da República, tem o objetivo de determinar a observância, por parte da Administração Pública Federal, direta e indireta, do conteúdo da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na PET n. 3.388/RR, especialmente das salvaguardas institucionais às terras indígenas.

1. A importância da decisão do STF na PET 3.388 e a participação indígena no processo

O caso Raposa Serra do Sol é um marco na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Certamente, constitui um dos julgamentos mais importantes da história recente da Suprema Corte brasileira, não apenas por seu relevante significado jurídico e político, mas pela alta complexidade das questões sociais, culturais, antropológicas e federativas envolvidas nesse difícil e distinto caso de demarcação de terra indígena.

A Corte sempre esteve consciente de que os desafios levantados pelos problemas suscitados no processo da PET n. 3.888 não poderiam ser solucionados com a lógica disjuntiva própria dos pronunciamentos de simples procedência ou improcedência da ação. O caso estava realmente a cobrar soluções diferenciadas, que tentassem oferecer respostas seguras para a definição do quadro jurídico-institucional da demarcação da terra indígena e, ao mesmo tempo, pudessem equacionar os diversificados fatores sociais e culturais nele imbricados.

A elevada responsabilidade e o sério compromisso político-institucional assumido pelos Ministros naquele julgamento foi evidenciada nas reflexões finais do então Presidente da Corte, o Ministro Gilmar Mendes, da seguinte forma:

“O caso Raposa Serra do Sol é, certamente, um dos mais difíceis e complexos já enfrentados por esta Corte em toda a sua história. Os múltiplos e diversificados fatores sociais envolvidos numa imbricada teia de questões antropológicas, políticas e federativas faz desse julgamento um marco em nossa jurisprudência constitucional.

Não há respostas precisas e diretas para o problema apresentado ao Tribunal. Soluções de improcedência ou procedência, total ou parcial, dos pedidos apresentados, não abarcam a totalidade das questões suscitadas em toda a sua complexidade e diversidade.

A decisão que tomamos hoje, portanto, deve também estar voltada para o futuro. Não devemos apenas mirar nossa atenção retrospectiva para quase três décadas de conflitos nesse difícil processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Devemos, isso sim, deixar fundadas as bases jurídicas para o contínuo reconhecimento aos povos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam.

Essa é a lição que temos a oportunidade de deixar assentada no julgamento de hoje. Temos o dever de, em nome da Constituição e de sua força normativa, fixar os parâmetros para que o Estado brasileiro – não apenas a União, mas a federação em seu conjunto – efetive os direitos fundamentais indígenas por meio dos processos de demarcação.

A decisão de hoje, dessa forma, tem um inegável cunho pedagógico que não podemos menosprezar. As considerações que fiz após muito refletir sobre o problema – inclusive por meio de verificação in loco de suas reais dimensões –, levam em conta esse conteúdo propedêutico que nossa decisão pode assumir em relação a outros processos de demarcação.

Assim, não pretendo, de maneira alguma, impor soluções definitivas e exatas para os problemas enfrentados. Analiso todas as questões que no processo foram suscitadas e aceno, com isso, para o futuro, numa hermenêutica que leva em conta um ‘pensamento de possibilidades’ (Häberle)”.

A definição jurisprudencial das denominadas “salvaguardas institucionais” às terras indígenas é o resultado de um longo e reflexivo trabalho de um colegiado de magistrados que, ciente de sua difícil missão institucional, procurou compreender as múltiplas perspectivas sociais apresentadas no caso, inclusive mediante visitas in loco à terra indígena, e assim equacionar todas as questões jurídicas envolvidas, com o claro e consciente objetivo de estabelecer um marco constitucional para a proteção dos direitos dos índios à suas terras. Um quadro jurídico-constitucional que, ao oferecer uma resposta para o caso concreto, ao mesmo tempo representaria, com inegável conteúdo propedêutico, o parâmetro normativo geral para garantir a segurança jurídica e a efetividade dos direitos indígenas em futuros processos de demarcação. Uma decisão que, como ressaltou o Ministro Gilmar Mendes, deveria também “estar voltada para o futuro”, deixando “fundadas as bases jurídicas para o contínuo reconhecimento aos povos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam”.

Apesar de estar na incumbência primordial do colegiado de magistrados, a construção jurisprudencial das salvaguardas institucionais às terras indígenas foi realizada no âmbito de um processo judicial aberto às múltiplas vozes sociais, mediante mecanismos dialógicos de participação e de representação inclusiva de entidades e segmentos interessados no deslinde da questão. Ingressaram no processo não apenas as partes, o Ministério Público, o Estado de Roraima e, especialmente, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), como igualmente diversas comunidades indígenas, a exemplo da Comunidade Indígena Barro (petição n. 68.192), da Comunidade Indígena Socó (petição n. 70.151), e de diversas outras (Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho, Manalai). Muitos destes, apesar de terem ingressado no feito após encerrada a fase de instrução (na qualidade de assistentes simples), tiveram ampla oportunidade e possibilidade de levar seus argumentos à consideração do colegiado, mediante petições, memoriais, etc; e efetivamente tiveram suas razões levadas em conta nos pronunciamentos do Tribunal. Um dos momentos marcantes do julgamento, inclusive, foi a primeira sustentação oral na história proferida por uma mulher indígena, Joênia Batista de Carvalho (Joênia Wapixana), no Plenário da Suprema Corte, na defesa dos direitos e interesses das comunidades indígenas.

É sabido que uma das mais importantes conquistas dos povos indígenas está hoje plasmada na garantia da consulta prévia e da participação efetiva das comunidades em processos decisórios estatais que envolvam seus interesses, como assegurado pela Convenção n. 169, da Organização Internacional do Trabalho, internalizada no Direito Brasileiro pelo Decreto Legislativo n. 143/2002 e pelo Decreto Presidencial n. 5.051/2014(11). O direito à inclusão participativa dos índios nos processos estatais, não obstante, pode ser consagrado e efetivado de distintos modos, dependendo das características dos atos e procedimentos envolvidos, assim como das finalidades públicas almejadas, dos temas relacionados e de outros interesses e direitos conflitantes. O STF definiu que “esse direito de participação não é absoluto” e que “certos interesses também podem excepcionar ou limitar, sob certas condições, o procedimento de consulta prévia”, como por exemplo a “defesa nacional” (12). Como ressaltou o Ministro Luis Roberto Barroso, na ocasião do julgamento dos Embargos de Declaração na PET n. 3.388, “o acórdão não infirma os termos da Convenção n. 169/OIT, mas apenas destaca que, em linha de princípio, o direito de prévia consulta deve ceder diante de questões estratégicas relacionadas à defesa nacional”.

As salvaguardas institucionais são resultado de uma construção dialética, porém no bojo de um processo judicial, o que não requer, impreterivelmente, a observância do requisito participativo indígena, na conceituação e na dimensão significativa presentes na Convenção n. 169/OIT. Isso se aplica tanto à construção judicial das salvaguardas institucionais, efetivada pelo colegiado do STF, como à definição normativa de algumas das condicionantes institucionais que elas representam, que dispensaram essa participação e, a critério do próprio Tribunal, não implicaram qualquer ofensa aos ditames da referida convenção internacional. Assim, não se pode afirmar que a definição dessas condicionantes às demarcações de terras ocorreu sem qualquer tipo de participação das comunidades indígenas. Subordinada às limitações institucionais próprias dos procedimentos judiciais, a participação indígena se efetivou condicionada aos atos e formas do processo jurisdicional, assim como a definição em si das salvaguardas institucionais, como atestado pela própria Corte, não implicou violação ao direito de participação indígena previsto no documento internacional.

Ademais, como também consolidado pelo STF, a importância da participação indígena “não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade” (13). Assim, como deixou registrado o Ministro Luis Roberto Barroso, “os índios devem ser ouvidos e seus interesses devem ser honesta e seriamente considerados. Disso não se extrai, porém, que a deliberação tomada, ao final, só possa valer se contar com a sua aquiescência. Em uma democracia, as divergências são normais e esperadas. Nenhum indivíduo ou grupo social tem o direito subjetivo de determinar sozinho a decisão do Estado. Não é esse tipo de prerrogativa que a Constituição atribuiu aos índios”.

2. As salvaguardas institucionais como normas decorrentes da interpretação da Constituição

O raciocínio jurídico comumente desenvolvido pelas Cortes Constitucionais contempla, em sua essência, a extração de normas dos diversos dispositivos da Constituição. O texto constitucional, em seu estado bruto e de múltiplos significados potenciais, é submetido a processos hermenêuticos de compreensão, análise, verificação e construção interpretativa de precisos sentidos normativos que poderão ser aplicados como solução para os casos sob julgamento. A interpretação constitucional, em suma, visa apreender os significados normativos do texto da Constituição e, dessa forma, definir as normas constitucionais(14).

Muitas vezes, as características dos casos submetidos às Cortes, normalmente qualificados por conflitos de interesses de alta complexidade que suscitam uma gama de possibilidades e respostas dispostas em textos de múltiplos sentidos diferenciados e que colidem entre si, exigem dos intérpretes (do colegiado de magistrados) um esforço hermenêutico no sentido da compreensão holística do contexto interpretativo, do conhecimento sistemático e da apreensão tópica ou problemática do caso, o que pode levar a processos de interpretação criativa(15) ou de superinterpretação(16) dos textos e, com isso, à construção de significados antes não observados ou compreendidos.

 Essa construção interpretativa sobre o texto da Constituição é tarefa comum a qualquer Corte Constitucional(17) e a jurisprudência do STF está repleta de decisões que empreenderam interpretações criativas das disposições constitucionais em questões relacionadas ao aborto de fetos anencéfalos(18), reconhecimento das uniões homoafetivas(19), ao racismo e ao anti-semitismo(20), fidelidade partidária(21), à proibição de nepotismo na administração pública(22), pesquisas científicas com células embrionárias humanas(23), entre várias outras.

As difíceis e complexas questões jurídicas e sociais envolvidas no caso Raposa Serra do Sol exigiram do Supremo Tribunal Federal o desenvolvimento de processos de interpretação criativa da Constituição, especialmente de seus artigos 231 e 232, que perfazem o sistema de direitos e garantias fundamentais dos índios. Assim era de se esperar, tendo em vista o conturbado histórico de quase três décadas de infindáveis conflitos em torno da terra indígena, um complicado contexto social e político que tornou premente e necessária a construção interpretativa, a partir do texto constitucional, das dezenove salvaguardas institucionais às terras indígenas, no intuito de definir um quadro normativo constitucional que pudesse oferecer segurança jurídica aos processos de demarcação das terras e, assim, efetivar os direitos fundamentais dos índios.

As denominadas salvaguardas institucionais às terras indígenas, portanto, nada mais são do que normas decorrentes da interpretação do texto da Constituição, especialmente dos artigos 231 e 232, realizada pelo Supremo Tribunal Federal. Como esclareceu o Ministro Luis Roberto Barroso, “as condições em tela são elementos que a maioria dos Ministros considerou pressupostos para o reconhecimento da demarcação válida, notadamente por decorrerem essencialmente da própria Constituição. Na prática, sua inserção no acórdão pode ser lida da seguinte forma: se o fundamento para se reconhecer a validade da demarcação é o sistema constitucional, a Corte achou por bem explicitar não apenas esse resultado isoladamente, mas também as diretrizes desse mesmo sistema que conferem substância ao usufruto indígena e o compatibilizam com outros elementos igualmente protegidos pela Constituição” (24).

Na qualidade de normas jurídicas, as salvaguardas institucionais representam as premissas do raciocínio jurídico desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal para a solução do caso Raposa Serra do Sol. Na forma do raciocínio lógico dedutivo (modus ponens), as premissas fornecem o fundamento ou a base para, através das inferências estabelecidas, chegar-se às conclusões. Na argumentação jurídica, as premissas jurídicas podem ter o seu conteúdo material definido pelo tribunal, o qual pode empreender processos interpretativos para a construção das razões materiais para a decisão, a partir dos textos normativos e demais fontes do direito. É assim que se estrutura, basicamente, as argumentações jurídicas desenvolvidas em decisões judiciais.

No âmbito da teoria geral da argumentação, foi Stephen Toulmin(25) quem consagrou a estrutura da argumentação, ao construir um esquema estrutural válido para todo argumento, independentemente do campo da argumentação, e assim tornar mais claros, em relação ao tradicional esquema lógico dedutivo (baseado no esquema simples de premissas e conclusão), os elementos do argumento e as fases de uma argumentação. Para Toulmin, todo argumento possui sempre os seguintes elementos, que compõem a sua forma ou a sua estrutura (layout): 1)o ponto de partida da argumentação, isto é, a pretensão inicialmente determinada, que coincide com a conclusão que se tenta fixar ou estabelecer (claim – C); 2)os elementos justificatórios que servem de base para a alegação realizada, denominados de dados ou simplesmente razões (grounds – G); 3)as proposições gerais (regras, princípios, enunciados, etc.) que permitem realizar inferências e passar dos dados ou das razões à conclusão, denominadas garantias (warrant – W). Esses são os elementos básicos de um argumento simples, cuja estrutura mais complexa envolve outros elementos(26), entre os quais sobressai o respaldo (backing - B) da garantia, isto é, o fundamento que assegura a vigência e autoridade da garantia.

No raciocínio desenvolvido no julgamento da PET n. 3.388/RR, presentes os elementos ou dados apresentados no caso, o Tribunal identifica, por meio de construção interpretativa, as proposições gerais ou garantias – isto é, os enunciados normativos representados pelas denominadas salvaguardas institucionais – que lhe permitirão chegar às soluções ou conclusões, sempre com respaldo na autoridade da Constituição (especificamente das disposições dos artigos 231 e 232).

Assim, a decisão do STF no caso Raposa Serra do Sol possui uma estrutura argumentativa que está composta, no âmbito das premissas materiais de base ou das garantias, pelas denominadas salvaguardas institucionais, isto é, as condicionantes institucionais aos processos demarcatórios das terras indígenas, na qualidade de normas construídas interpretativamente pelo Tribunal, a partir do texto da Constituição de 1988.

Essa característica do raciocínio judicial empreendido no caso está assim esclarecida pelo próprio Tribunal. No julgamento dos Embargos de Declaração na PET n. 3.388, o Ministro Teori Zavascki, ao explicar a função das salvaguardas institucionais na fundamentação da decisão, destacou que “tais condicionantes representam, na verdade, os fundamentos jurídicos adotados como pressupostos para a conclusão, que foi pela procedência parcial do pedido”.

Portanto, na qualidade de normas que serviram de premissas ou garantias para a decisão, as salvaguardas institucionais não representam nenhuma anomalia no comportamento judicial ou qualquer extravagância em um processo natural e comum de interpretação e aplicação da Constituição por parte do STF, seguindo um iter interpretativo e argumentativo de comum estrutura. A sua inserção e destaque na parte dispositiva da decisão apenas revela a intenção da Corte de fixá-las definitivamente como normas definidoras de um regime jurídico para a demarcação de terras indígenas.

3. A intenção do STF em dar aplicabilidade geral às salvaguardas institucionais

A existência de um modelo seriatim de prática deliberativa e de decisão colegiada no Supremo Tribunal Federal – o qual permite que cada magistrado pronuncie seu posicionamento individual, com suas próprias razões de decidir, as quais serão ao final apenas agregadas no acórdão – muitas vezes cria obstáculos para a identificação precisa das ratio decidendi e das reais intenções do colegiado ao adotar determinada solução para o caso(27).

Apesar da grande extensão e da complexidade do acórdão proferido na PET n. 3.388, com as diversas razões explanadas individualmente por cada um dos magistrados que participaram da deliberação, os fundamentos da decisão no caso Raposa Serra do Sol foram objeto de suficientes esclarecimentos posteriores por parte do próprio Tribunal, tanto no julgamento dos embargos de declaração (PET-ED n. 3.388/RR) como de outros processos que envolveram questões relacionadas à demarcação de terras indígenas (por exemplo: RMS 29.087/DF).

Os materiais que hoje podem ser coletados na jurisprudência do STF fornecem claros e precisos fundamentos para se concluir que, de fato, o Tribunal fixou as denominadas salvaguardas institucionais com a deliberada intenção de que elas pudessem definir um verdadeiro regime jurídico, formado por normas constitucionais decorrentes da interpretação dos artigos 231 e 232 da Constituição, que estabelecesse uma série de condicionantes não apenas para a solução do caso Raposa Serra do Sol, mas igualmente para todo e qualquer processo de demarcação de terras indígenas no Brasil.

No julgamento do RMS 29.087/DF, o Ministro Gilmar Mendes deixou enfatizado que “na PET 3.388, o Supremo Tribunal Federal estipulou uma série de fundamentos e salvaguardas institucionais relativos à demarcação de terras indígenas”. Trata-se, como asseverou o Ministro, “de orientações não apenas direcionadas a esse caso específico, mas a todos os processos sobre o mesmo tema”. E adiante ressalta, de modo contundente, que “o precedente de Raposa Serra do Sol não se dirige apenas ao caso de Raposa Serra do Sol. Basta ler os enunciados para saber que muitos deles não se aplicam à Raposa Serra do Sol, até porque já estava realizado”.

De fato, algumas das salvaguardas institucionais não foram estabelecidas em razão do caso concreto, mas mediante interpretação do texto constitucional com vistas à fixação de regras gerais para todos os processos demarcatórios. Como reconhecido pela Procuradoria-Geral da República na peça de embargos de declaração à PET n. 3.388, “a maior parte das questões abordadas nas referidas condições não guarda qualquer relação com o objeto específico da lide”.

Assim, para além do caso concreto, as salvaguardas institucionais constituem comandos gerais direcionados à atuação dos órgãos estatais nos processos de demarcação de terras indígenas. Elas foram construídas interpretativamente, a partir da Constituição, com esse propósito muito claro e definido.

Essa é, igualmente, a posição do Ministro Celso de Mello, externada no julgamento do RMS n. 29.087/DF. Nas palavras do Ministro: “É importante enfatizar, neste ponto, que essas diretrizes, tais como definidas pelo Supremo Tribunal Federal, acentuam a força normativa da Constituição Federal, pois derivam, essencialmente, do próprio texto de nossa Lei Fundamental”. Em seguida então esclarece o Ministro: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar os embargos de declaração opostos ao acórdão proferido na PET 3.388/RR, reafirmou a extração eminentemente constitucional desses requisitos, assinalando-lhes a condição de pressupostos legitimadores da validade do procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas”.

Também a Ministra Cármen Lúcia, ao se pronunciar sobre o tema no acórdão do RMS n. 29.087/DF, esclareceu que “naquela assentada de 19.3.2009, este Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento daquela Petição 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol)” e que, “pela ‘superlativa importância histórico-cultural da causa’, examinou-se o regime jurídico constitucional de demarcação de terras indígenas no Brasil e fixaram-se as balizas a serem observadas naquele processo demarcatório”. Assim, segundo a Ministra, “erigiram-se, naquela oportunidade, salvaguardas institucionais intrinsecamente relacionadas e complementares que assegurariam a validade daquela demarcação e serviriam de norte para as futuras”. E, mais a frente, a Ministra conclui que “fixou-se que os pressupostos erigidos naquela decisão para o reconhecimento da validade da demarcação realizada em Roraima decorreriam da Constituição da República, pelo que tais condicionantes ou diretrizes lá delineadas haveriam de ser consideradas em casos futuros, especialmente pela força jurídico-constitucional do precedente histórico”.

A aplicabilidade geral das salvaguardas institucionais, portanto, decorre de seu próprio processo de construção interpretativa, no qual, como alegado e esclarecido pelos próprios Ministros, foi guiado por esse intuito de estabelecer um regime jurídico para todas as demarcações. As condicionantes institucionais por elas estabelecidas compõem um verdadeiro sistema normativo, fundado nos artigos 231 e 232 da Constituição, que pode fornecer um parâmetro seguro para os processos demarcatórios das terras indígenas.

4. Os efeitos da decisão do STF na PET 3.388

Apesar de terem sido construídas para desenvolver aplicabilidade geral, as salvaguardas institucionais e, em suma, a parte dispositiva da decisão na PET n. 3.388/RR, formalmente só produzem efeitos vinculantes para o caso Raposa Serra do Sol. Foi o que afirmou o próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Embargos de Declaração, reconhecendo que, por se tratar de uma ação popular e, dessa forma, de um processo de caráter subjetivo submetido a regras e procedimentos específicos, os efeitos do acórdão somente poderiam ter incidência para a solução do caso concreto, os denominados efeitos inter partes.

Assim, as condicionantes institucionais integram o objeto da decisão e fazem coisa julgada material em relação ao caso Raposa Serra do Sol, de modo que a validade dos atos e procedimentos demarcatórios não poderá mais ser rediscutida em outros processos, devendo ser observada e respeitada por todos.

Quanto aos efeitos temporais, a decisão contém implícita a cláusula rebus sic stantibus, o que faz com que as salvaguardas institucionais permaneçam válidas enquanto permanecer imutável o estado de fato e de direito levado em conta no julgamento, ficando sempre vulneráveis à eventual atuação futura do legislador, no plano constitucional ou infraconstitucional, no sentido da criação de novas condicionantes e do estabelecimento de outro regime jurídico da demarcação de terras indígenas(28).

Além desses efeitos formais intrínsecos, não se pode desconsiderar a elevada carga argumentativa e decisória presente no acórdão da PET n. 3.388, que a impregna de uma qualificada vis expansiva e configura um precedente com força persuasiva suficiente para traçar diretrizes para outros casos e, assim, condicionar a atuação dos atores estatais em outros processos de demarcação de terras indígenas.

Foi essa a intenção manifestada pelo próprio Tribunal ao esclarecer o significado de sua própria decisão no caso Raposa Serra do Sol. Essa natural vis expansiva, inclusive, integra todas as decisões de uma Corte Suprema em casos emblemáticos ou leading cases como esse. Como afirmou contundentemente o Ministro Roberto Barroso, em seu voto condutor da decisão da Corte nos Embargos de Declaração na PET n. 3.388, seria equivocado “afirmar que as decisões do Supremo Tribunal Federal se limitariam a resolver casos concretos, sem qualquer repercussão sobre outras situações. Ao contrário, a ausência de vinculação formal não tem impedido que, nos últimos anos, a jurisprudência da Corte venha exercendo o papel de construir o sentido das normas constitucionais, estabelecendo diretrizes que têm sido observadas pelos demais juízos e órgãos do Poder Público de forma geral”. O Ministro Cezar Peluso também deixou expressa essa conclusão em seu voto na PET n. 3.388, ao afirmar que “a postura que esta Corte está tomando hoje não é de julgamento de um caso qualquer, cujos efeitos se exaurem em âmbito mais ou menos limitado, mas é autêntico caso-padrão, ou leading case, que traça diretrizes não apenas para solução da hipótese, mas para disciplina de ações futuras e, em certo sentido, até de ações pretéritas, nesse tema”.

Essa evidente constatação permitiu ao Tribunal concluir, no julgamento dos Embargos de Declaração na PET n. 3.388, que “embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite de superação de suas razões”.

A celeuma jurídica que se instaurou, logo após o julgamento definitivo da PET n. 3.388, em torno dos reais efeitos da decisão do STF nesse caso Raposa Serra do Sol, deve-se mais a uma difundida incompreensão sobre o papel fundamental de uma Suprema Corte no sistema constitucional e a função que suas decisões exercem como fontes do direito no ordenamento jurídico dos Estados democráticos na atualidade, do que à existência de uma genuína e qualificada divergência jurídica.

5. Eficácia e autoridade das decisões do STF

As decisões das Cortes Supremas e dos Tribunais Constitucionais devem ser observadas e respeitadas por todos os atores políticos e autoridades públicas que atuam no âmbito dos Estados Democráticos de Direito. As razões de decidir (ratio decidendi) que normalmente compõem os pronunciamentos judiciais desses tribunais estão qualificadas não apenas como razões substantivas, que contêm os elementos de justificação e de correção material da tese fixada, mas igualmente como razões de autoridade, as quais se impõem como normas de observância e de cumprimento geral(29). A argumentação jurídica produzida por uma Corte Constitucional, portanto, se caracteriza também pelo argumento de autoridade(30) que se forma por razões que se justificam independentemente de seu conteúdo substancial(31), e que não se constitui necessariamente de aspectos persuasivos, mas de uma autoridade vinculante(32). Cortes Supremas e Tribunais Constitucionais, dessa forma, representam instituições políticas que, qualificadas como órgãos primários na estrutura de um sistema institucionalizado de normas, combinam a produção e a aplicação jurídica de maneira muito especial e assim determinam, de modo autoritativo, as situações jurídicas dos indivíduos e de suas relações sociais(33).

A forma e o modo como os enunciados judiciais das Cortes assumem suas feições autoritativas e assim são reconhecidos, respeitados e aplicados possuem variações correspondentes aos sistemas, estruturas e organizações diversificadas em cada sociedade. A experiência dos Estados Unidos da América representa um exemplo eloquente de como o desenvolvimento histórico das instituições políticas daquele país foi capaz de construir uma cultura institucional em torno de precedentes judiciais e moldar todo um sistema de observância e acatamento dos pronunciamentos de sua Suprema Corte. O denominado princípio do stare decisis influencia e condiciona toda a atuação política e judicial das instituições norte-americanas e, desse modo, ainda que sob diferentes perspectivas(34), constitui um elemento básico de coerência e estabilidade do sistema jurídico do common law, indispensável para a segurança jurídica como princípio fundamental do Estado de Direito (Rule of Law).

No Brasil, não obstante, a formação histórica do Supremo Tribunal Federal e a construção inicial de um sistema de controle de constitucionalidade de normas não foram acompanhadas pela institucionalização de um princípio de stare decisis ou de qualquer mecanismo dotado de semelhantes funções. Devido a uma série de fatores que podem ser observados na perspectiva histórica de análise do período de formação da República Federativa (1890-91) – entre os quais sobressai a preocupação política com a concentração de poderes e, nesse aspecto, com o extremo fortalecimento político-institucional do STF, inspirado no modelo da Suprema Corte norte-americana, em relação à experiência de seu antecessor, o Supremo Tribunal de Justiça do Império – o constituinte daquele momento rejeitou a proposta de Rui Barbosa(35), a qual, no fundo, pretendia introduzir o princípio do stare decisis no sistema constitucional brasileiro.

A primeira formação da jurisdição constitucional no Brasil assim se caracterizou como um modelo cujas decisões eram dotadas apenas de efeitos entre as partes do processo e que, desse modo, não poderiam fixar uma interpretação do ordenamento jurídico com caráter obrigatório erga omnes. Essa talvez seja a principal razão de índole histórica, política e institucional pela qual o desenvolvimento do modelo brasileiro de jurisdição constitucional, e especialmente o desenho institucional do Supremo Tribunal Federal, sempre estiveram caracterizados pela recorrente instituição de mecanismos tendentes a superar a ausência no sistema de um princípio de stare decisis.

O primeiro desses mecanismos foi consagrado pela Constituição de 1934, que atribuiu ao Senado, então considerado como o “coordenador” dos Poderes(36), a competência para estender os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em casos concretos(37). O instituto sobreviveu aos percalços da história constitucional brasileira(38) e, renovado no atual art. 52, X, da Constituição de 1988, sempre se caracterizou por conferir à Casa Legislativa poderes exclusivos e eminentemente discricionários, próprios dos atos políticos, que estão imunes a qualquer tipo de controle externo e que assim se subtraem ao crivo dos demais Poderes(39). Cabe exclusivamente ao Senado a decisão política, sua forma e amplitude, assim como o tempo de sua emanação, em torno da atribuição ou não dos efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em casos concretos. Na prática, significa que esse mecanismo, em razão da imprevisão político-institucional que o caracteriza, não necessariamente insere no sistema uma correspondência lógica entre a decisão judicial de inconstitucionalidade em concreto e a emanação de uma proposição normativa de efeitos gerais e de obrigatória observância por todos os atores institucionais. Nesse aspecto, permanece válida e plena de sentido a decisão política inicial que caracterizou a primeira formação do controle de constitucionalidade no Brasil, em 1891, de atribuir ao Supremo Tribunal o poder de decidir, na resolução de casos concretos, sobre a inconstitucionalidade de normas apenas com efeitos inter partes.

É certo que, ao longo de todo esse período, o desenvolvimento paulatino, e em certa medida paralelo, de um robusto modelo de controle concentrado e em abstrato de constitucionalidade de normas – sobretudo a partir da Constituição de 1988 e do advento das Leis n. 9.868 e n. 9.882, ambas de 1999 – inseriu no sistema institutos processuais e técnicas de decisão que, ao possibilitarem a eficácia vinculante e os efeitos erga omnes das declarações de inconstitucionalidade, fortaleceram o caráter autoritativo dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, especialmente em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública em geral. A Corte também passou a ter outros instrumentos processuais e procedimentais para produzir entendimentos com força de autoridade para órgãos judiciais e administrativos. Os institutos criados pela Reforma do Poder Judiciário estabelecida pela Emenda Constitucional n. 45/2004, a Repercussão Geral e a Súmula Vinculante, tornaram-se mecanismos cruciais para a afirmação e consolidação da jurisprudência do STF em relação aos demais juízes e tribunais, o que foi igualmente reforçado pelo pleno e profícuo desenvolvimento da Reclamação como ação constitucional cada vez mais vocacionada ao resguardo da competência e da autoridade das decisões da Corte.

O fato de o STF possuir atualmente tais instrumentos processuais e procedimentais e desenvolver de modo cada vez mais contundente seu papel institucional de Corte Constitucional da qual são emanadas decisões com forte impacto nas instituições políticas e repercussão social generalizada, aliado a fatores muito evidentes que transformaram completamente o sistema brasileiro de jurisdição constitucional – a decadência ou mesmo a insubsistência da suposta “bipolaridade” entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade; assim como a transmudação da cultura jurídico-política em torno do princípio da separação dos poderes em relação à concepção dominante na década de 1930 –, estão a pressionar a normatividade do art. 52, X, da Constituição, colocando em permanente questão a subsistência dessa competência do Senado nos moldes como ela foi inicialmente contemplada na Constituição de 1934.

É conhecida e amplamente difundida a tese segundo a qual a disposição presente no art. 52, X, da Constituição, teria passado ao longo das últimas décadas por um processo de mutação constitucional e que atualmente teria seu sentido normativo restrito à efetivação da publicidade, com caráter geral, da declaração de inconstitucionalidade já proferida pelo STF com inerentes efeitos erga omnes, estes já naturalmente decorrentes do próprio modelo atual de controle misto da constitucionalidade existente no Brasil, que por suas próprias características confere poderes à Corte Constitucional para fixar, com evidente força normativa e impacto generalizado nas instituições e em toda a sociedade, a interpretação da Constituição(40). Não obstante, foi o próprio STF que, no julgamento da Reclamação n. 4.335(41), rejeitou a necessidade de uma releitura do papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade, mantendo, portanto, sua competência exclusiva para decidir, em âmbito político de conveniência e oportunidade, sobre os efeitos erga omnes da decisão de inconstitucionalidade em concreto proferida pelo STF. 

Atualmente, e sobretudo após a decisão proferida na RCL n. 4.335, o sistema brasileiro de jurisdição constitucional se caracteriza por permanecer, nos moldes de sua configuração original, despido de um mecanismo processual explícito e amplamente aceito que atribua formalmente efeitos gerais à decisão do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. É o Senado Federal que, em razão da plena vigência e normatividade do art. 52, X, da Constituição, permanece com a atribuição exclusiva de conferir os efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade em concreto emanada do STF. Mesmo nas decisões proferidas em sede de recurso extraordinário submetido à sistemática da repercussão geral, os efeitos produzidos em relação aos juízes e tribunais, tendo em vista a necessidade de adoção da tese fixada em casos semelhantes e repetitivos, não necessariamente implicam eficácia geral e vinculante e, portanto, não obrigam os órgãos da Administração Pública a impreterivelmente observar a declaração de inconstitucionalidade.

6. O Decreto n. 2.346/1997 e o dever da Administração Pública de observar as decisões do STF

É nessa conjuntura que se renova a importância do Decreto n. 2.346, de 10 de outubro de 1997, o qual consolida normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública Federal em razão de decisões judiciais do STF, que permanecem vigentes até os dias atuais. Editado em uma época na qual ainda não existiam os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, e sequer havia as Leis n. 9.868 e n. 9.882, ambas do ano de 1999, suas normas visam precipuamente implementar, no âmbito da Administração Pública Federal, uma cultura jurídica em torno do dever funcional de observar, respeitar e fazer aplicar as decisões do Supremo Tribunal Federal. Por isso, em seu art. 1º, deixa-se explícito que:

Art. 1º. As decisões do Supremo Tribunal Federal que fixem, de forma inequívoca e definitiva, interpretação do texto constitucional deverão ser uniformemente observadas pela Administração Pública Federal direta e indireta, obedecidos os procedimentos estabelecidos neste Decreto”.

Em seu § 1º do art. 1º, o Decreto traz disposição relacionada às decisões proferidas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade, determinando o seguinte:

“Art. 1º. (...) § 1º. Transitada em julgado decisão do Supremo Tribunal Federal que declare a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, em ação direta, a decisão, dotada de eficácia ex tunc, produzirá efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, salvo se o ato praticado com base na lei ou ato normativo inconstitucional não mais for suscetível de revisão administrativa ou judicial”.

Referido dispositivo se desatualizou, ainda que parcialmente, em virtude do advento das Leis n. 9.868 e n. 9.882, de 1999, assim como em face de suas posteriores modificações, que atualmente permitem ao STF modular os efeitos de sua declaração de inconstitucionalidade e conferir eficácia pro futuro à decisão, mitigando os efeitos da nulidade da lei inconstitucional. De toda forma, em se tratando do controle abstrato de constitucionalidade, a Administração Pública Federal ficará submetida aos efeitos erga omnes e à eficácia vinculante inerente aos provimentos jurisdicionais emanados do STF nas ações específicas desse controle (ADI, ADC, ADO e ADPF), de modo que todos os seus órgãos deverão observar a interpretação fixada pela Corte, em conformidade com os efeitos da decisão prolatada.

Em relação ao controle difuso de constitucionalidade, o § 2º do art. 1º condiciona a eficácia da decisão do STF em relação à Administração Pública Federal à efetiva suspensão, pelo Senado Federal, da execução da lei declarada inconstitucional. Eis o teor do referido dispositivo:

“Art. 1º. (...) § 2º. O disposto no parágrafo anterior aplica-se, igualmente, à lei ou ao ato normativo que tenha sua inconstitucionalidade proferida, incidentalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, após a suspensão de sua execução pelo Senado Federal”.

Tendo em vista a já comentada competência de caráter eminentemente político atribuída ao Senado para a efetiva concessão dos efeitos erga omnes à declaração incidental de inconstitucionalidade(42), que não se submete a prazos e que na prática tende a se consumar após lapsos temporais alargados em relação ao trânsito em julgado da decisão do STF, a submissão formal da Administração Pública Federal à autoridade da interpretação constitucional fixada pelo STF fica a depender da atuação específica do Presidente da República no sentido de autorizar a extensão dos efeitos jurídicos da decisão proferida no caso concreto. É o entendimento que pode ser extraído da interpretação sistemática do subsequente § 3º do art. 1º do Decreto n. 2.346:

“Art. 1º. (...) § 3º. O Presidente da República, mediante proposta de Ministro de Estado, dirigente de órgão integrante da Presidência da República ou do Advogado-Geral da União, poderá autorizar a extensão dos efeitos jurídicos de decisão proferida em caso concreto”.

A proposta oriunda da Advocacia-Geral da União poderá ser consubstanciada em parecer jurídico elaborado para os fins do art. 40 da Lei Complementar n. 73/1993, atribuição que, de acordo com o art. 41 da mesma lei, também compete ao Consultor-Geral da União. Este é o teor dos mencionados dispositivos:

“Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República.

§ 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. (...)

Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República”.

Assim, para cumprir os objetivos traçados pelo Decreto n. 2.346/1997, o Presidente da República poderá aprovar parecer elaborado pela Consultoria-Geral da União e aprovado pela Advogada-Geral da União, o qual, uma vez publicado juntamente com o despacho presidencial, consubstanciará parecer normativo que, sob o aspecto formal, vinculará todos órgãos da Administração Pública Federal, que ficarão submetidos à autoridade da interpretação da Constituição definida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos concretos.

O presente parecer é elaborado com esse objetivo e tem em vista a premente necessidade de fazer com que as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, fixadas pelo STF no acórdão da PET n. 3.388 e posteriormente esclarecidas pelo próprio Tribunal no julgamento dos Embargos de Declaração nesse mesmo processo, constituam um regime jurídico para todos os processos de demarcação de terras indígenas, efetivamente vinculante para a atuação dos órgãos da Administração Pública Federal direta e indireta.

8. A consolidação da decisão da PET 3.388 na jurisprudência do STF

Antes de concluir, é importante deixar esclarecido e enfatizado que a decisão na PET n. 3.388/RR, complementada pelo acórdão dos embargos de declaração, tem sido reafirmada em diversos outros julgamentos no próprio Supremo Tribunal Federal, tornando indubitável a consolidação e estabilização normativa das salvaguardas institucionais e dos demais parâmetros fixados pelo Tribunal para a demarcação de terras indígenas no país. Está comprovado, portanto, que não se trata de um caso isolado, mas de um entendimento jurisprudencial solidificado, que de fato pode fornecer as balizas gerais para a atuação dos órgãos da Administração Pública.

No já citado julgamento do RMS n. 29.087/DF, a Corte Suprema concluiu novamente que “a data da promulgação da Constituição Federal (5.10.1988) é referencial insubstituível do marco temporal para verificação da existência da comunidade indígena, bem como da efetiva e formal ocupação fundiária pelos índios”; e que o “processo demarcatório de terras indígenas deve observar as salvaguardas institucionais definidas pelo Supremo Tribunal Federal na Pet 3.388 (Raposa Serra do Sol)”.

No julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 803.462/MS(43), o Tribunal voltou a considerar que, no julgamento da PET n. 3.388/RR, ficou estabelecido como “marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988” e que “renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada”.

Na apreciação do RMS n. 29.542/DF, também se ressaltou, com base no voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, que “a possibilidade de revisão e consequente ampliação dos limites das reservas indígenas já demarcadas, a partir da interpretação conferida aos arts. 231 e 232 da Constituição da República de 1988, foi objeto de amplo debate no julgamento da Petição n. 3.388/RR” e que, “naquela assentada, os Ministros deste Supremo Tribunal, por maioria, vencidos os Ministros Ayres Britto, Eros Grau e Cármen Lúcia, acolheram a proposta do Ministro Menezes Direito no sentido de vedar a ampliação de reservas indígenas já demarcadas”. E, por fim, concluíram novamente os Ministros que “o julgamento da Petição n. 3.388/RR representou marco no exame judicial da questão indígena no Brasil. As matérias nela debatidas, as conclusões alcançadas e, sobretudo, as diretrizes nela traçadas devem servir de norte para todos os processos demarcatórios de terras indígenas e devem orientar a aplicação do direito pelos magistrados que julguem a mesma questão jurídica”.

Como se vê, a Corte Suprema tem entendimento muito consolidado a respeito de dois tópicos fundamentais para a demarcação das terras indígenas: 1) a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, como marco temporal de ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena; 2) a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas.

O primeiro ponto está bem delineado no acórdão da PET n. 3.388, onde o Tribunal assentou que “a Constituição Federal trabalhou com data certa — a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) — como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Assim, a Corte afirma que “é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”. E que, “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.

Quanto ao segundo ponto, o da vedação à ampliação de terra indígena (salvaguarda institucional n. XVII), o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade, no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED n. 3.388/RR), de tecer alguns aclaramentos essenciais para a sua compreensão. No voto do Ministro Luis Roberto Barroso, Relator dos embargos, foram realizados três esclarecimentos principais, reproduzidos a seguir.

Em primeiro lugar, tal como consta literalmente no referido voto do Ministro Roberto Barroso, “afirmou-se que o instrumento da demarcação previsto no art. 231 da Constituição não pode ser empregado, em sede de revisão administrativa, para ampliar a terra indígena já reconhecida, submetendo todo o espaço adjacente a uma permanente situação de insegurança jurídica. Nada disso impede que a área sujeita a uso pelos índios seja aumentada por outros instrumentos previstos no Direito. Os próprios índios e suas comunidades podem adquirir imóveis, na forma da lei civil (Lei nº 6.001/73, arts. 32 e 33). Nessa qualidade, terão todos os direitos e poderes de qualquer proprietário privado (CF/88, art. 5º, XXII). A União Federal também pode obter o domínio de outras áreas, seja pelos meios negociais tradicionais (como a compra e venda ou a doação), seja pela desapropriação (CF/88, art. 5º, XXIV)”.

Em segundo lugar, também nas palavras do Ministro, “o acórdão embargado não proíbe toda e qualquer revisão do ato de demarcação. O controle judicial, por exemplo, é plenamente admitido (CF/88, 5º, XXXV) – não fosse assim, a presente ação jamais poderia ter sido julgada no mérito, já que seu objeto era justamente a validade de uma demarcação. A limitação prevista no acórdão alcança apenas o exercício da autotutela administrativa. Em absoluta coerência com as razões expostas, assentou-se que a demarcação de terras indígenas ‘não abre espaço para nenhum tipo de revisão fundada na conveniência e oportunidade do administrador’ (Ministro Menezes Direito, fl. 395). Isso porque a inclusão de determinada área entre as ‘terras tradicionalmente ocupadas pelos índios’ não depende de uma avaliação puramente política das autoridades envolvidas, e sim de um estudo técnico antropológico. Sendo assim, a modificação da área demarcada não pode decorrer apenas das preferências políticas do agente decisório. O mesmo não ocorre, porém, nos casos em que haja vícios no processo de demarcação. A vinculação do Poder Público à juridicidade – que autoriza o controle judicial dos seus atos – impõe à Administração Pública o dever de anular suas decisões quando ilícitas, observado o prazo decadencial de 5 anos (Súmula 473/STF; Lei nº 9.784/99, arts. 53 e 54). Nesses casos, em homenagem aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (CF/88, art. 5º, LVI e LV), a anulação deve ser precedida de procedimento administrativo idôneo, em que se permita a participação de todos os envolvidos (Lei nº 9.784/99, arts. 3º e 9º) e do Ministério Público Federal (CF/88, art. 232; Lei Complementar nº 75/93, art. 5º, III, e), e deve ser sempre veiculada por decisão motivada (Lei nº 9.784/99, art. 50, I e VIII). Ademais, como a nulidade é um vício de origem, fatos ou interesses supervenientes à demarcação não podem dar ensejo à cassação administrativa do ato”.

E, em terceiro lugar, “independentemente do que se observou acima, é vedado à União rever os atos de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ainda que no exercício de sua autotutela administrativa”.

Portanto, esses pontos essenciais estão devidamente densificados e esclarecidos na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a qual constitui e oferece uma base jurídica segura para a correta e precisa compreensão, por parte dos órgãos da Administração Pública Federal, das teses firmadas no acórdão da PET n. 3.388/RR, especialmente das dezenove salvaguardas institucionais às terras indígenas.

9. Conclusões

Estas são as razões pelas quais se conclui que a Administração Pública Federal deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da PET n. 3.388/RR, fixou as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, determinando a sua aplicação a todos os processos de demarcação de terras indígenas, em consonância com o que também esclarecido e definido pelo Tribunal no acórdão proferido no julgamento dos Embargos de Declaração (PET-ED n. 3.388/RR) e em outras de suas decisões posteriores, todas analisadas neste parecer (ex.: RMS n. 29.087/DF; ARE n. 803.462/MS; RMS n. 29.542/DF).

Portanto, nos processos de demarcação de terras indígenas, os órgãos da Administração Pública Federal, direta e indireta, deverão observar as seguintes condições:

(I) o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas (art. 231, § 2º, da Constituição Federal) pode ser relativizado sempre que houver, como dispõe o art. 231, § 6º, da Constituição, relevante interesse público da União, na forma de lei complementar;

(II) o usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;

(III) o usufruto dos índios não abrange a pesquisa e lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando-se-lhes a participação nos resultados da lavra, na forma da lei;

(IV) o usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão de lavra garimpeira;

(V) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;

(VI) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;

(VII) o usufruto dos índios não impede a instalação, pela União Federal, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e educação;

(VIII) o usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

(IX) o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área da unidade de conservação também afetada pela terra indígena com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta os usos, tradições e costumes dos indígenas, podendo para tanto contar com a consultoria da FUNAI;

(X) o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

(XI) devem ser admitidos o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela FUNAI;

(XII) o ingresso, o trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;

(XIII) a cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público, tenham sido excluídos expressamente da homologação, ou não;

(XIV) as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício do usufruto e da posse direta pela comunidade indígena ou pelos índios (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, caput, Lei nº 6.001/1973);

(XV) é vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas, a prática de caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 231, § 2º, Constituição Federal, c/c art. 18, § 1º, Lei nº 6.001/1973);

(XVI) as terras sob ocupação e posse dos grupos e das comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto nos arts. 49, XVI, e 231, § 3º, da CR/88, bem como a renda indígena (art. 43 da Lei nº 6.001/1973), gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos, taxas ou contribuições sobre uns ou outros;

(XVII) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;

(XVIII) os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis (art. 231, § 4º, CR/88); e

(XIX) é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, encravadas em seus territórios, observada a fase em que se encontrar o procedimento.

Em caso de acolhimento das presentes conclusões, este parecer poderá ser submetido à aprovação do Exmo. Sr. Presidente da República, e uma vez publicado juntamente com o despacho presidencial, deverá vincular a Administração Pública Federal, cujos órgãos e entidades ficarão obrigados a lhe dar fiel cumprimento (artigos 40 e 41 da Lei Complementar n. 73/1993), a partir da data da sua publicação.

À consideração superior.

Brasília, 19 de julho de 2017.

 ANDRÉ RUFINO DO VALE

Consultor-Geral da União substituto

 (1) Supremo Tribunal Federal, Plenário, Petição n. 3.388/RR, Relator Ministro Ayres Britto, julg. 19.03.2009, DJe 25.09.2009.

(2) A edição da Portaria AGU n. 303, de 16.07.2012, foi resultado das conclusões, no âmbito desta Consultoria-Geral da União, do Parecer n. 153/2010/DENOR/CGU/AGU (processo 00400.018100/2009-26). O preâmbulo e o artigo 1º da portaria dispõem o seguinte: “O Advogado-Geral da União, no uso das atribuições que lhe conferem o art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição Federal e o art. 4º, incisos X e XVIII, da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, e considerando a necessidade de normatizar a atuação das unidades da Advocacia-Geral da União em relação às salvaguardas institucionais às terras indígenas, nos termos do entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388-Roraima (caso Raposa Serra do Sol), cujo alcance já foi esclarecido por intermédio do PARECER nº 153/2010/DENOR/CGU/AGU, devidamente aprovado, resolve: Art. 1º. Fixar a interpretação das salvaguardas às terras indígenas, a ser uniformemente seguida pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta, determinando que se observe o decidido pelo STF na Pet. 3.388-Roraima, na forma das condicionantes abaixo: (...)”.

(3) Especialmente em razão do Ofício nº 260/Gab/Pres-Funai (23/07/2012), que solicitava prazo para a oitiva dos povos indígenas sobre o tema.

(4) A Advocacia-Geral da União valeu-se da Portaria n. 308, de 25/07/2012, para alterar o art. 6º da Portaria n. 303/2012, fixando-lhe o termo inicial de vigência para o dia 24/09/2012; e, na sequência, vindo o referido acórdão do STF a ser objeto de embargos de declaração, editou a Portaria AGU nº 415, de 17/09/2012, fixando esse termo inicial para o dia seguinte ao da publicação do acórdão nos embargos declaratórios a ser proferido na Petição nº 3.388/RR.

(5) No Acórdão dos Embargos de Declaração, proferido em 23/10/2013, o STF: a) negou efeitos modificativos da decisão anterior, mantendo integralmente as referidas salvaguardas; b) esclareceu que tais condições ou condicionantes decorreriam do sistema da própria Constituição; c) enfatizou operarem coisa julgada material somente para o caso Raposa Serra do Sol; d) admitiu que devido a terem sido estabelecidas em ação popular, tecnicamente falta-lhes força vinculante e não se estendem automaticamente a outros processos em que se discuta matéria similar; e) ponderou, porém, que a força moral e persuasiva de tal decisão exigirá elevado ônus argumentativo para se superar a aplicação dessas condicionantes a outros casos similares.

(6) Nos autos do processo n. 00692.003281/2014-15, a Consultoria-Geral da União conduziu, no ano de 2014, um estudo comparativo entre as salvaguardas mantidas pelo acórdão dos embargos e as disposições da Portaria AGU nº 303/2012, do qual decorreu-lhe percepção de que em seu mérito esta continuaria – s.m.j. – coadunada ao conjunto dos referidos acórdãos do STF, porém, passaria a ter seu efeito vinculativo relativizado pela última decisão. De seu turno, também contribuindo para o mesmo estudo, no processo 00400.000605/2015-82, a Secretaria-Geral de Contencioso, em pronunciamento exteriorizado ainda no ano de 2014, depois mantido na Nota AGU/SGCT/ADZIN n. 28/2015 (16/07/2015), posicionou-se como segue: a) apenas porque proferida em sede de ação popular, meio processual inidôneo para controle abstrato de normas, é que a decisão do STF, embora para o caso concreto esteja dotada de eficácia contra todos (“erga omnes”), não operaria efeitos vinculantes e nem obrigatoriedade formal (“formally binding”) para todas as demais situações símiles, visto que desprovida de vinculação automática para outros casos; b) sem embargo disso, seus efeitos de precedente persuasivo da mais elevada Corte Judiciária do País tendem a nortear o critério decisório em futuras demarcações, consoante se denota dos julgamentos do RMS nº 29.087 (j. 16.09.2014, red. p/ o acórdão o Min. Gilmar Mendes) e do RMS nº 29.542 9 (j. 30.09.2014, rel. Min. Carmen Lúcia); c) já constam inclusive da parte dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello manifestações favoráveis à conveniência do restabelecimento da Portaria AGU nº 303/2012, que reputam importante contribuição para pacificação do tema (RMS nº 29.087, 2ª Turma, j. 16.09.2014, Dl de 14.10.2014, p. 72); d) a análise determinada pela Portaria AGU  nº  27/2014 não demanda considerações  quanto à conveniência  e  oportunidade  acerca  da  manutenção,  alteração  ou  revogação  da Portaria AGU nº 303/2012, próprios da autoridade competente; e) no que concerne à compatibilidade de conteúdos jurídicos entre a Portaria AGU nº 303/2012 e a decisão integrada proferida pelo STF na Petição nº 3.388-STF, e à vista da minuta de sugestões propostas pela CGU, em caso de eventual decisão pela manutenção da Portaria nº 303/2012 far-se-iam necessárias que a minuta agregasse as exíguas adequações formuladas na sua manifestação.

(7) Por exemplo, no processo nº 08001.001453/2015-40, examinou-se a promoção do Ofício 1ªSec/RI/E/nº 164/15 (13/03/2015), no qual a 1ª Secretaria da Câmara dos Deputados, nos termos do § 2º do art. 50 da Constituição, promoveu ao Ministro de Estado da Justiça o Requerimento de Informação nº 4.320 (14/05/2014), para instar “informações em relação às medidas e providências que a Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça e a Procuradoria Federal da Fundação Nacional do Índio irá adotar quanto à entrada em vigor da Portaria 303/2012 da Advocacia-Geral da União”. Dessa análise emergiu a controvérsia entre a Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça (Parecer n. 216/2015/Conjur-MJ/CGU/AGU, de 19/03/2015) e a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai (Despacho n. 024/2015/GAB/PFE/PFE-Funai/PGF/AGU, de 23/03/2015) acerca da  vigência da Portaria AGU n. 303, de 16/07/2012, a primeira concluindo que “a Portaria AGU n. 303, de 2012, está em vigor desde a publicação do acórdão nos embargos declaratórios na Petição nº 3.388-RR, conforme expressamente prevê seu art. 6º”; a segunda sustentando que “tendo em vista que se encontram ainda pendentes de julgamento embargos declaratórios opostos em 14/02/2014 por Lawrence Manly Harte e outros, nos autos da PET 3.388, a aplicação da Portaria AGU nº 303/2012 permanece suspensa”. Chamadas a Secretaria - Geral de Contencioso e a Procuradoria-Geral Federal a se manifestarem acerca dessa controvérsia, a primeira exteriorizou o Parecer AGU/SGCT/JMR/nº 37/2015 (14/04/2015), atestando que, referentemente à terra indígena Raposa Serra do Sol, e em relação às partes do Processo da Petição n. 3.388, o acórdão ali proferido pelo Supremo Tribunal Federal reveste-se atualmente de plena e imediata exequibilidade, e a segunda posicionou-se na Nota nº 023/2015/DEPCONSU/PGF/AGU (23/04/2015), sufragando o entendimento do Parecer nº 216/2015/Conjur-MJ/CGU/AGU (19/03/2015).

(8) No processo nº 0688.001553/2014-10, o Ofício nº 398/2014 - AI/GAB/SDH/PR (24/09/2014), em que, para os fins de instruir apresentação de manifestação no Caso nº 12.673-MC-818-04 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (CIDH), versado aos povos indígenas da região roraimense de Raposa Serra do Sol, notadamente à situação das comunidades  lngarikó, Macuxi, Patamona, Wapixana e Taurepang, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República solicitou informações acerca da vigência da Portaria AGU nº 303/2012. No processo nº 00400.000605/2015-82, o Ofício 1ªSec/RI/E/nº 687/2015 (22/05/2015), em que a Primeira Secretaria da Câmara dos Deputados, a fundamento do § 2º do art. 50 da Constituição, encaminhou à AGU o Requerimento de Informação nº 476/2015, no qual o Exmo. Deputado Federal Alceu Moreira postulou “informações em relação à definição, no âmbito da Advocacia-Geral da União, da análise das salvaguardas institucionais a serem aplicadas pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal, nos termos da Portaria/AGU nº 27, de 7 de fevereiro de 2014”, de sua análise tendo resultado a resposta veiculada pelo Aviso nº 225/AGU (26/06/2015), a noticiar-lhe que o objeto da demanda ainda se encontrava pendente de estudos no âmbito da Advocacia-Geral da União. No processo nº 00400.000799/2015-16, o Ofício nº 290/2015-P (02/07/2015), em que a Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados postulou que o Advogado-Geral da União revogasse a Portaria AGU nº 303/2012. E no processo nº 00400.000996/2016-16, a demanda do  Conselho Nacional de Política Indigenista - CNPI, criado no âmbito do Ministério da Justiça pelo Decreto nº 8.593, de 17/12/2015, ora presidido pelo titular da Fundação Nacional do Índio – Funai, e por ela secretariado conjuntamente com o Ministério da Justiça e Cidadania, que insta a Advocacia-Geral a manifestar-se sobre a legalidade da sua Portaria nº 303/2012, em atenção aos termos da Resolução CNPI nº 01, de 28/04/2016, que recomenda a sua anulação, por não considerar suficiente a informação de que a questão seria resolvida após a conclusão e aprovação dos estudos em curso na AGU.

(9) Aprova a Nota n. 02/2016/ADJ/AG (11/05/2016), a qual conclui que “enquanto os estudos mencionados na Portaria nº 27, de 2014, não forem apresentados e aprovados, a Portaria nº 303, de 2012, segue sem eficácia. Não se olvide, contudo, que os julgados do Supremo Tribunal Federal têm por seu mérito próprio uma força de orientar as decisões futuras, tanto jurídicas quanto administrativas, mas não há que se falar, neste momento, de aplicação em sentido estrito da mencionada portaria”.

(10) Lei Complementar n. 73/1993: “Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República. § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. (...) Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República”.

(11) Convenção n. 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 143/2002 e promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.

(12) Trechos do voto do Ministro Luis Roberto Barroso no julgamento da PET-ED 3.388, em 23.10.2013.

(13) O entendimento ficou consignado no voto do Min. Gilmar Mendes: “É preciso deixar claro que a consulta e comunicação, com o auxílio da FUNAI, às comunidades indígenas é fundamental, inclusive para que elas manifestem sua opinião e contribuam para a construção conjunta de metas e restrições de uso das terras, a garantir a proteção ambiental das áreas de unidades de conservação. Isso não significa que as decisões dependam formalmente da aceitação das comunidades indígenas como requisito de validade, mas que a sua participação na construção de uma decisão potencializa a eficácia da conservação ambiental”.

(14) A distinção entre texto e norma pode ser encontrada em diversos estudos importantes da teoria do Direito. Entre outros, vide: GIANFORMAGGIO, Letizia. L’interpretazione della Costituzione tra applicazione basata su principi. In: Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, gennaio/marzo, IV Serie, LXII, Giuffrè, 1985, p. 89. GUASTINI, Riccardo. Distinguendo. Estudios de teoría y metateoría del derecho. Barcelona: Gedisa; 1999, p. 101.

(15) GUASTINI, Riccardo. Teoría e ideología de la interpretación constitucional. Madrid: Trotta; 2010.

(16) Sobre o conceito de “superinterpretação” (overinterpretation; sobreinterpretación) de textos em geral (literários, científicos, etc.), vide: ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes; 2005.

(17) Como ressalta Riccardo Guastini, tratando do exemplo italiano: “La sobreinterpretación (overinterpretation) de la Constitución es, en Italia, una práctica constante de la Corte Constitucional, de los órganos del estado en general y de la doctrina. Son innumerables las normas no expresas que han sido extraidas del texto constitucional”. GUASTINI, Riccardo. Estudios de teoría constitucional. Máxico: Fontamara; 2003, p. 167. É vasta a literatura sobre a interpretação criativa realizada por Cortes e Tribunais Constitucionais. Entre outros vários, vide: SANCHÍS, Luis Prieto. Interpretación jurídica y creación judicial del Derecho. Lima: Palestra Editores; 2005. GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Estudios de teoría y metateoría del Derecho. Barcelona: Gedisa; 1999. VÁZQUEZ, Rodolfo (comp.). Interpretación jurídica y decisión judicial. México: Fontamara; 2003. ASIS ROIG, Rafael de. Jueces y normas. La decisión judicial desde el ordenamento. Madrid: Marcial Pons; 1995. MALEM, Jorge (et al.). La función judicial. Barcelona: Gedisa; 2003. ALISTE SANTOS, Tomás-Javier. La motivación de las resoluciones judiciales. Madrid: Marcial Pons; 2011.

(18) STF-ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 12.04.2012.

(19) STF-ADPF 132/DF e ADI 4.277/DF, Rel. Min. Carlos Britto, julg. 05.05.2011.

(20) STF-HC 82424/RS, Pleno, Relator Moreira Alves, redator para Acórdão Maurício Corrêa, DJ 19.3.2004.

(21) STF-MS 26.602/DF, Relator Eros Grau, DJ 17.10.2008.

(22) STF-ADC 12/DF, Relator Carlos Britto, julg. 20.8.2008.

(23) STF-ADI 3.510/DF, Relator Ministro Carlos Britto, julg. 29.5.2008.

(24) Trechos do voto do Ministro Luis Roberto Barroso no julgamento da PET-ED 3.388, em 23.10.2013.

(25) TOULMIN, Stephen. The uses of argument. Cambridge: Cambridge University Press; 1958. Na tradução para o espanhol: TOULMIN, Stephen. Los usos de la argumentación. Trad. de María Morrás y Victoria Pineda. Barcelona: Ediciones Península; 2007.

(26) O esquema de argumento proposto por Toulmin deixa explícitas e distintas, separadamente, as razões, as conclusões, as garantias, os qualificadores modais, as condições de refutação e o respaldo, ao invés de simplesmente fazer referência a premissas em geral. O esquema de Toulmin seria assim mais transparente em relação à estrutura efetiva dos argumentos tal como eles são desenvolvidos na prática.

(27) VALE, André Rufino do. La deliberación en los Tribunales Constitucionales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales; 2017.

(28) Os efeitos temporais da decisão foram bem esclarecidos pelo Ministro Teori Zavascki: “Quanto à eficácia temporal, a decisão embargada, como toda sentença de efeitos prospectivos, deve ser compreendida com implícita cláusula rebus sic stantibus: sua eficácia supõe a manutenção do estado de fato e de direito tomados como pressupostos do julgamento. Essa observação é particularmente significativa para o caso, uma vez que, como salientado, a sentença definiu vários aspectos importantes do regime jurídico da terra indígena demarcada. Ora, não há regime jurídico imutável. Nem mesmo o regime constitucional o é. É certo, portanto, que a decisão embargada não pode inibir futura atuação do legislador, seja no plano constitucional, seja no exercício da edição da lei complementar ou da ordinária (como as que se refere o § 6º do art. 231 da CF). Nesse sentido, sem prejuízo, obviamente, do controle jurisdicional da sua legitimidade, eventuais disposições normativas futuras, legitimamente editadas, hão de ser observadas para todos os efeitos, inclusive no que se refere às ‘condicionantes’ de que trata a decisão embargada. Da mesma forma, não fica inibida futura atuação do próprio Poder Judiciário, no âmbito jurisdicional, para promover, como prevê o art. 471, I, do CPC, revisão ou complementação dos termos dessas ‘condicionantes’, para compatibilizá-las com supervenientes modificações futuras no estado de fato ou de direito”. Trechos do voto do Ministro Teori Zavascki no julgamento da PET-ED 3.388, em 23.10.2013.

(29) SUMMERS, Robert S.. Two Types of Sustantive Reasons: The Core of A Theory of Common Law Justification. In: Cornell Law Review, nº 63, 1978, p. 730. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. Springer, Law and Philosophy Library 8; 2009, p. 259.

(30) ATIENZA, Manuel. O argumento de autoridade no Direito. Trad. de André Rufino do Vale. Revista NEJ, Vol. 17 - n. 2 - p. 144-160 / mai-ago 2012.

(31) HART, Herbert L.A.. Commands and Authotitative Legal Reasons. In: Essays on Bentham. Jurisprudence and Political Theory. Clarendon Press: Oxford, 1982.

(32) SCHAUER, Frederick. Authority and Authorities. In: Virginia Law Review, vol. 94, 2008, pp. 1931-1961.

(33) RAZ, Joseph. Razón práctica y normas. Trad. de Juan Ruiz Manero. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales; 1991, p. 151 e ss.

(34) WALDRON, Jeremy. Stare Decisis and the Rule of Law: A Layered Approach. (First Draft, August 2011), October 11, 2011, NYU School of Law, Public Law Research Paper No. 11-75.

(35) Rui Barbosa havia sugerido a seguinte emenda ao art. 34 do Projeto de Constituição elaborado pela denominada “Comissão dos Cinco”, criada pelo Governo Provisório por meio do Decreto n. 23, de 3 de dezembro de 1889: “Art. 34. Compete privativamente ao Congresso Nacional: (...) § 18. Criar tribunais subordinados ao Supremo Tribunal Federal”. Cf. BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XVII. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946, p. 40.

(36) Constituição de 1934, Artigo 88: “Ao Senado Federal, nos termos dos arts. 90, 91 e 92, incumbe promover a coordenação dos Poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos da sua competência”.

(37) Constituição de 1934, Artigo 91, IV: “Compete ao Senado Federal: (...) IV – suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”.

(38) O dispositivo foi reiterado nos textos de 1946 (art. 64), de 1967/1969 (art. 42, VII) e de 1988 (art. 52, X).

(39) BROSSARD, Paulo. O Senado e as leis inconstitucionais, Revista de Informação Legislativa, 13(50):61.

(40) MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004.

(41) Na RCL n. 4.335, o STF discutiu sobre a possibilidade de a decisão de inconstitucionalidade proferida no Habeas Corpus 82.959, em sede de controle difuso, poderia revestir-se de eficácia erga omnes independentemente da resolução do Senado Federal.

(42) Há muito o Supremo Tribunal Federal entende que o Senado não está obrigado a proceder à suspensão do ato declarado inconstitucional (MS 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ de 25.05.1966).  Assim ensinava o Ministro Victor Nunes: “(...) o Senado terá seu próprio critério de conveniência e oportunidade para praticar o ato de suspensão.  Se uma questão foi aqui decidida por maioria escassa e novos Ministros são nomeados, como há pouco aconteceu, é de todo razoável que o Senado aguarde novo pronunciamento antes de suspender a lei.  Mesmo porque não há sanção específica nem prazo certo para o Senado se manifestar”.

(43) Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 803.462/MS, Rel. Min. Teori Zavascki, em 09.12.2014.

Este texto não substitui o publicado no DOU de 20.7.2017