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Presidência
da República |
DESPACHO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
PROCESSO Nº 00190.001989/2014-92
INTERESSADO: CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO
ASSUNTO: Inconstitucionalidade do art. 170 da Lei 8.112/1990
Adoto, para fins os do art. 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, o anexo PARECER N. 005/2016/CGU/AGU e submeto-o ao EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA, para os efeitos do art. 40 da referida Lei Complementar, tendo em vista a relevância da matéria versada.
Em 19 de dezembro de 2016.
GRACE
MARIA FERNANDES MENDONÇA
Advogada-Geral da União
___________
(*) A respeito deste Parecer o Excelentíssimo Senhor Presidente da República
exarou o seguinte despacho. "Aprovo.
Em, 19-XII-2016"
PARECER N. 005/2016/CGU/AGU
PROCESSO: 00190.001989/2014-92
INTERESSADO: CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO
I. A Administração Pública Federal deve observar a decisão do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança n. 23.262/DF, que declarou a inconstitucionalidade do art. 170 da Lei n. 8.112/1990.
II. No âmbito dos processos administrativos disciplinares, uma vez extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora não poderá fazer o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor público.
Exma. Sra. Advogada-Geral da União,
Em 23 de abril de 2014, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o Mandado de Segurança n. 23.262/DF e, incidentalmente, declarou a inconstitucionalidade do art. 170 da Lei n. 8.112/1990, nos termos do voto do Relator Ministro Dias Toffoli, fixando as teses que estão consolidadas na ementa do acórdão, a seguir transcrito:
Constitucional e Administrativo. Poder disciplinar. Prescrição. Anotação de fatos desabonadores nos assentamentos funcionais. Declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 170 da Lei nº 8.112/90. Violação do princípio da presunção de inocência. Segurança concedida.
1. A instauração do processo disciplinar interrompe o curso do prazo prescricional da infração, que volta a correr depois de ultrapassados 140 (cento e quarenta) dias sem que haja decisão definitiva.
2. O princípio da presunção de inocência consiste em pressuposto negativo, o qual refuta a incidência dos efeitos próprios de ato sancionador, administrativo ou judicial, antes do perfazimento ou da conclusão do processo respectivo, com vistas à apuração profunda dos fatos levantados e à realização de juízo certo sobre a ocorrência e a autoria do ilícito imputado ao acusado.
3. É inconstitucional, por afronta ao art. 5º, LVII, da CF/88, o art. 170 da Lei nº 8.112/90, o qual é compreendido como projeção da prática administrativa fundada, em especial, na Formulação nº 36 do antigo DASP, que tinha como finalidade legitimar a utilização dos apontamentos para desabonar a conduta do servidor, a título de maus antecedentes, sem a formação definitiva da culpa.
4. Reconhecida a prescrição da pretensão punitiva, há impedimento absoluto de ato decisório condenatório ou de formação de culpa definitiva por atos imputados ao investigado no período abrangido pelo PAD.
5. O status de inocência deixa de ser presumido somente após decisão definitiva na seara administrativa, ou seja, não é possível que qualquer consequência desabonadora da conduta do servidor decorra tão só da instauração de procedimento apuratório ou de decisão que reconheça a incidência da prescrição antes de deliberação definitiva de culpabilidade.
6. Segurança concedida, com a declaração de inconstitucionalidade incidental do art. 170 da Lei nº 8.112/1990.
O acórdão foi publicado no dia 30 de outubro de 20141 e a decisão transitou em julgado em 19 de novembro do mesmo ano, tendo sido, nessa ocasião, enviado ofício (n. 4080/P) ao Presidente do Senado Federal para o exercício da competência prevista no art. 52, X, da Constituição2. O Senado, não obstante, ainda não apreciou a questão3 e, desse modo, a decisão proferida pelo STF no MS 23.262/DF permanece despida dos efeitos erga omnes necessários para vincular a Administração Pública Federal na análise de atos e processos que envolvam a aplicação do art. 170 da Lei n. 8.112/1990.
No âmbito desta Consultoria-Geral da União, a questão foi discutida no Processo n. 00190.0011989/2014, no qual foi proferido o Parecer n. 027/2015/DECOR/CGU/AGU, de 4 de fevereiro de 2015, que, após aprovado pelos Despachos n. 079/2015/CGOR/DECOR/CGU/AGU, de 19 de março de 2015, e n. 130/2015/SFT/CGU/AGU, de 9 de junho de 2015, concluiu que “o art. 170 da Lei n. 8.112/90 está em pleno vigor, uma vez que a decisão do Supremo Tribunal Federal no MS n. 23.262 não tem efeito vinculante para a Administração”. De toda forma, referido parecer deixou consignado que “não há óbice à aplicação, no âmbito do Poder Executivo, por determinação presidencial, do entendimento do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 170 da Lei n. 8.112, de 1990, nos autos do Mandado de Segurança n. 23.262”.
A Secretaria-Geral de Contencioso, por meio da Nota Técnica n. 77/2016/GAB/SGCT/AGU (aprovada pelo Despacho n. 225/2016/GAB/SGCT/AGU), sugeriu a esta Consultoria-Geral da União a análise da viabilidade de aplicação das disposições do Decreto n. 2.346, de 10 de outubro de 1997, o qual consolida normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública Federal em razão de decisões judiciais do STF, especialmente de seu art. 1º, § 3º, que prescreve que “o Presidente da República, mediante proposta de Ministro de Estado, dirigente de órgão integrante da Presidência da República ou do Advogado-Geral da União, poderá autorizar a extensão dos efeitos jurídicos de decisão proferida em caso concreto”.
O presente parecer, elaborado com base nos artigos 40 e 41 da Lei Complementar n. 73, de 19934, para ser submetido à aprovação do Exmo. Sr. Presidente da República, analisa a aplicação do Decreto n. 2.346/1997 para fundamentar o dever da Administração Pública Federal de observar e fazer cumprir a decisão do STF no Mandado de Segurança n. 23.262/DF.
I. O DEVER DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE OBSERVAR AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O DECRETO 2.346/1997
As decisões das Cortes Supremas e dos Tribunais Constitucionais devem ser observadas e respeitadas por todos os atores políticos e autoridades públicas que atuam no âmbito dos Estados Democráticos de Direito. As razões de decidir (ratio decidendi) que normalmente compõem os pronunciamentos judiciais desses tribunais estão qualificadas não apenas como razões substantivas, que contêm os elementos de justificação e de correção material da tese fixada, mas igualmente como razões de autoridade, as quais se impõem como normas de observância e de cumprimento geral5. A argumentação jurídica produzida por uma Corte Constitucional, portanto, se caracteriza também pelo argumento de autoridade6 que se forma por razões que se justificam independentemente de seu conteúdo substancial7, e que não se constitui necessariamente de aspectos persuasivos, mas de uma autoridade vinculante8. Cortes Supremas e Tribunais Constitucionais, dessa forma, representam instituições políticas que, qualificadas como órgãos primários na estrutura de um sistema institucionalizado de normas, combinam a produção e a aplicação jurídica de maneira muito especial e assim determinam, de modo autoritativo, as situações jurídicas dos indivíduos e de suas relações sociais9.
A forma e o modo como os enunciados judiciais das Cortes assumem suas feições autoritativas e assim são reconhecidos, respeitados e aplicados possuem variações correspondentes aos sistemas, estruturas e organizações diversificadas em cada sociedade. A experiência dos Estados Unidos da América representa um exemplo eloquente de como o desenvolvimento histórico das instituições políticas daquele país foi capaz de construir uma cultura institucional em torno de precedentes judiciais e moldar todo um sistema de observância e acatamento dos pronunciamentos de sua Suprema Corte. O denominado princípio do stare decisis influencia e condiciona toda a atuação política e judicial das instituições norte-americanas e, desse modo, ainda que sob diferentes perspectivas10, constitui um elemento básico de coerência e estabilidade do sistema jurídico do common law, indispensável para a segurança jurídica como princípio fundamental do Estado de Direito (Rule of Law).
No Brasil, não obstante, a formação histórica do Supremo Tribunal Federal e a construção inicial de um sistema de controle de constitucionalidade de normas não foram acompanhadas pela institucionalização de um princípio de stare decisis ou de qualquer mecanismo dotado de semelhantes funções. Devido a uma série de fatores que podem ser observados na perspectiva histórica de análise do período de formação da República Federativa (1890-91) – entre os quais sobressai a preocupação política com a concentração de poderes e, nesse aspecto, com o extremo fortalecimento político-institucional do STF, inspirado no modelo da Suprema Corte norte-americana, em relação à experiência de seu antecessor, o Supremo Tribunal de Justiça do Império – o constituinte daquele momento rejeitou a proposta de Rui Barbosa11, a qual, no fundo, pretendia introduzir o princípio do stare decisis no sistema constitucional brasileiro.
A primeira formação da jurisdição constitucional no Brasil assim se caracterizou como um modelo cujas decisões eram dotadas apenas de efeitos entre as partes do processo e que, desse modo, não poderiam fixar uma interpretação do ordenamento jurídico com caráter obrigatório erga omnes. Essa talvez seja a principal razão de índole histórica, política e institucional pela qual o desenvolvimento do modelo brasileiro de jurisdição constitucional, e especialmente o desenho institucional do Supremo Tribunal Federal, sempre estiveram caracterizados pela recorrente instituição de mecanismos tendentes a superar a ausência no sistema de um princípio de stare decisis.
O primeiro desses mecanismos foi consagrado pela Constituição de 1934, que atribuiu ao Senado, então considerado como o “coordenador” dos Poderes12, a competência para estender os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em casos concretos13. O instituto sobreviveu aos percalços da história constitucional brasileira14 e, renovado no atual art. 52, X, da Constituição de 1988, sempre se caracterizou por conferir à Casa Legislativa poderes exclusivos e eminentemente discricionários, próprios dos atos políticos, que estão imunes a qualquer tipo de controle externo e que assim se subtraem ao crivo dos demais Poderes15. Cabe exclusivamente ao Senado a decisão política, sua forma e amplitude, assim como o tempo de sua emanação, em torno da atribuição ou não dos efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF em casos concretos. Na prática, significa que esse mecanismo, em razão da imprevisão político-institucional que o caracteriza, não necessariamente insere no sistema uma correspondência lógica entre a decisão judicial de inconstitucionalidade em concreto e a emanação de uma proposição normativa de efeitos gerais e de obrigatória observância por todos os atores institucionais. Nesse aspecto, permanece válida e plena de sentido a decisão política inicial que caracterizou a primeira formação do controle de constitucionalidade no Brasil, em 1891, de atribuir ao Supremo Tribunal o poder de decidir, na resolução de casos concretos, sobre a inconstitucionalidade de normas apenas com efeitos inter partes.
É certo que, ao longo de todo esse período, o desenvolvimento paulatino, e em certa medida paralelo, de um robusto modelo de controle concentrado e em abstrato de constitucionalidade de normas – sobretudo a partir da Constituição de 1988 e do advento das Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999 – inseriu no sistema institutos processuais e técnicas de decisão que, ao possibilitarem a eficácia vinculante e os efeitos erga omnes das declarações de inconstitucionalidade, fortaleceram o caráter autoritativo dos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, especialmente em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública em geral. A Corte também passou a ter outros instrumentos processuais e procedimentais para produzir entendimentos com força de autoridade para órgãos judiciais e administrativos. Os institutos criados pela Reforma do Poder Judiciário estabelecida pela Emenda Constitucional n. 45/2004, a Repercussão Geral e a Súmula Vinculante, tornaram-se mecanismos cruciais para a afirmação e consolidação da jurisprudência do STF em relação aos demais juízes e tribunais, o que foi igualmente reforçado pelo pleno e profícuo desenvolvimento da Reclamação como ação constitucional cada vez mais vocacionada ao resguardo da competência e da autoridade das decisões da Corte.
O fato de o STF possuir atualmente tais instrumentos processuais e procedimentais e desenvolver de modo cada vez mais contundente seu papel institucional de Corte Constitucional da qual são emanadas decisões com forte impacto nas instituições políticas e repercussão social generalizada, aliado a fatores muito evidentes que transformaram completamente o sistema brasileiro de jurisdição constitucional – a decadência ou mesmo a insubsistência da suposta “bipolaridade” entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade; assim como a transmudação da cultura jurídico-política em torno do princípio da separação dos poderes em relação à concepção dominante na década de 1930 –, estão a pressionar a normatividade do art. 52, X, da Constituição, colocando em permanente questão a subsistência dessa competência do Senado nos moldes como ela foi inicialmente contemplada na Constituição de 1934.
É conhecida e amplamente difundida a tese segundo a qual a disposição presente no art. 52, X, da Constituição, teria passado ao longo das últimas décadas por um processo de mutação constitucional e que atualmente teria seu sentido normativo restrito à efetivação da publicidade, com caráter geral, da declaração de inconstitucionalidade já proferida pelo STF com inerentes efeitos erga omnes, estes já naturalmente decorrentes do próprio modelo atual de controle misto da constitucionalidade existente no Brasil, que por suas próprias características confere poderes à Corte Constitucional para fixar, com evidente força normativa e impacto generalizado nas instituições e em toda a sociedade, a interpretação da Constituição16. Não obstante, foi o próprio STF que, no julgamento da Reclamação n. 4.33517, rejeitou a necessidade de uma releitura do papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade, mantendo, portanto, sua competência exclusiva para decidir, em âmbito político de conveniência e oportunidade, sobre os efeitos erga omnes da decisão de inconstitucionalidade em concreto proferida pelo STF.
Atualmente, e sobretudo após a decisão proferida na RCL 4.335, o sistema brasileiro de jurisdição constitucional se caracteriza por permanecer, nos moldes de sua configuração original, despido de um mecanismo processual explícito e amplamente aceito que atribua formalmente efeitos gerais à decisão do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. É o Senado Federal que, em razão da plena vigência e normatividade do art. 52, X, da Constituição, permanece com a atribuição exclusiva de conferir os efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade em concreto emanada do STF. Mesmo nas decisões proferidas em sede de recurso extraordinário submetido à sistemática da repercussão geral, os efeitos produzidos em relação aos juízes e tribunais, tendo em vista a necessidade de adoção da tese fixada em casos semelhantes e repetitivos, não necessariamente implicam eficácia geral e vinculante e, portanto, não obrigam os órgãos da Administração Pública a impreterivelmente observar a declaração de inconstitucionalidade.
É nessa conjuntura que se renova a importância do Decreto n. 2.346, de 10 de outubro de 1997, o qual consolida normas de procedimentos a serem observadas pela Administração Pública Federal em razão de decisões judiciais do STF, que permanecem vigentes até os dias atuais. Editado em uma época na qual ainda não existiam os institutos da repercussão geral e da súmula vinculante, e sequer havia as Leis n. 9.868 e n. 9.882, ambas do ano de 1999, suas normas visam precipuamente implementar, no âmbito da Administração Pública Federal, uma cultura jurídica em torno do dever funcional de observar, respeitar e fazer aplicar as decisões do Supremo Tribunal Federal. Por isso, em seu art. 1º, deixa-se explícito que:
“Art. 1º. As decisões do Supremo Tribunal Federal que fixem, de forma inequívoca e definitiva, interpretação do texto constitucional deverão ser uniformemente observadas pela Administração Pública Federal direta e indireta, obedecidos os procedimentos estabelecidos neste Decreto”.
Em seu § 1º do art. 1º, o Decreto traz disposição relacionada às decisões proferidas pelo STF em sede de controle abstrato de constitucionalidade, determinando o seguinte:
“Art. 1º. (...) § 1º. Transitada em julgado decisão do Supremo Tribunal Federal que declare a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, em ação direta, a decisão, dotada de eficácia ex tunc, produzirá efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, salvo se o ato praticado com base na lei ou ato normativo inconstitucional não mais for suscetível de revisão administrativa ou judicial”.
Referido dispositivo se desatualizou, ainda que parcialmente, em virtude do advento das Leis n. 9868 e n. 9.882, de 1999, assim como em face de suas posteriores modificações, que atualmente permitem ao STF modular os efeitos de sua declaração de inconstitucionalidade e conferir eficácia pro futuro à decisão, mitigando os efeitos da nulidade da lei inconstitucional. De toda forma, em se tratando do controle abstrato de constitucionalidade, a Administração Pública Federal ficará submetida aos efeitos erga omnes e à eficácia vinculante inerente aos provimentos jurisdicionais emanados do STF nas ações específicas desse controle (ADI, ADC, ADO e ADPF), de modo que todos os seus órgãos deverão observar a interpretação fixada pela Corte, em conformidade com os efeitos da decisão prolatada.
Em relação ao controle difuso de constitucionalidade, o § 2º do art. 1º condiciona a eficácia da decisão do STF em relação à Administração Pública Federal à efetiva suspensão, pelo Senado Federal, da execução da lei declarada inconstitucional. Eis o teor do referido dispositivo:
“Art. 1º. (...) § 2º. O disposto no parágrafo anterior aplica-se, igualmente, à lei ou ao ato normativo que tenha sua inconstitucionalidade proferida, incidentalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, após a suspensão de sua execução pelo Senado Federal”.
Tendo em vista a já comentada competência de caráter eminentemente político atribuída ao Senado para a efetiva concessão dos efeitos erga omnes à declaração incidental de inconstitucionalidade18, que não se submete a prazos e que na prática tende a se consumar após lapsos temporais alargados em relação ao trânsito em julgado da decisão do STF, a submissão formal da Administração Pública Federal à autoridade da interpretação constitucional fixada pelo STF fica a depender da atuação específica do Presidente da República no sentido de autorizar a extensão dos efeitos jurídicos da decisão proferida no caso concreto. É o entendimento que pode ser extraído da interpretação sistemática do subsequente § 3º do art. 1º do Decreto 2.346:
“Art. 1º. (...) § 3º. O Presidente da República, mediante proposta de Ministro de Estado, dirigente de órgão integrante da Presidência da República ou do Advogado-Geral da União, poderá autorizar a extensão dos efeitos jurídicos de decisão proferida em caso concreto”.
A proposta oriunda da Advocacia-Geral da União poderá ser consubstanciada em parecer jurídico elaborado para os fins do art. 40 da Lei Complementar n. 73/1993, atribuição que, de acordo com o art. 41 da mesma lei, também compete ao Consultor-Geral da União. Este é o teor dos mencionados dispositivos:
“Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República.
§ 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. (...)
Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República”.
Assim, para cumprir os objetivos traçados pelo Decreto n. 2.346/1997, o Presidente da República poderá aprovar parecer elaborado pela Consultoria-Geral da União e aprovado pela Advogada-Geral da União, o qual, uma vez publicado juntamente com o despacho presidencial, consubstanciará parecer normativo que, sob o aspecto formal, vinculará todos órgãos da Administração Pública Federal, que ficarão submetidos à autoridade da interpretação da Constituição definida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos concretos.
O presente parecer é elaborado com esse objetivo e tem em vista não apenas esse elemento formal ou autoritativo que deve revestir as decisões da Corte Suprema brasileira em relação aos órgãos administrativos federais, mas igualmente a correção substancial e, portanto, a legitimidade material da decisão específica proferida pelo STF no Mandado de Segurança n. 23.262/DF , na qual sobressaem também as razões substantivas que, no caso em análise, devem funcionar como elementos persuasivos no sentido do efetivo cumprimento pela Administração Pública Federal. Como se demonstrará no tópico seguinte, a decisão do STF faz uma adequada e correta intepretação da Constituição e, por isso, deve ser acatada e observada pelos órgãos públicos.
II. O DEVER DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL DE OBSERVAR E APLICAR O ENTENDIMENTO FIXADO PELO STF NO MS 23.262/DF
A decisão do STF no MS 23.262/DF, Relator Ministro Dias Toffoli, está devidamente justificada, tanto do ponto de vista de sua justificação interna, que leva em conta a coerência formal de seus argumentos, como na perspectiva de sua justificação externa, devido à correção material de suas razões e premissas de base.
A premissa material de base do raciocínio desenvolvido pelo STF foi construída a partir da interpretação da garantia fundamental da presunção de inocência, prevista no art. 5º, LVII, da Constituição, já consolidada na própria jurisprudência do Tribunal, no sentido de que esse postulado constitucional projeta-se para além da dimensão estritamente penal e, assim, também tem plena incidência em domínios jurídicos extrapenais, alcançando todas as medidas restritivas estatais que visem antecipar ou presumir os efeitos de uma condenação inexistente ou incerta.
A decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 14419 constitui um dos precedentes mais contundentes da Corte nesse sentido, na medida em que reúne e faz referência a uma série de julgados que delimitaram e fixaram esse entendimento, o qual encara a garantia da presunção de não-culpabilidade como uma barreira a qualquer intervenção restritiva na esfera individual, por parte dos poderes públicos, antes da formação do juízo de culpabilidade, de acordo com as regras do devido processo legal.
No julgamento da ADPF n. 144, ao construir uma linha coerente de precedentes a respeito do tema, o Supremo Tribunal enfatizou, inclusive do ponto de vista histórico, a importância que a presunção de inocência tem na formação do Estado de Direito e o dúplice papel que essa garantia cumpre no sistema constitucional: a negação da antiga ideia de que o indivíduo pode ser presumido culpado até prova em contrário; e a consagração do postulado fundamental da prevalência do estado de inocência antes da formação definitiva da culpa, seja no âmbito penal ou extrapenal. O voto do Relator, Ministro Celso de Mello, que representa um dos estudos mais eloquentes na jurisprudência do STF em torno da relevância histórica e política dessa garantia fundamental, contém trechos dignos de nota a respeito dos parâmetros básicos dos entendimentos já consolidados pela Corte:
“Como sabemos, a presunção de inocência – que se dirige ao Estado, para lhe impor limitações ao seu poder, qualificando-se, sob tal perspectiva, como típica garantia de índole constitucional, e que também se destina ao indivíduo, como direito fundamental por este titularizado – representa uma notável conquista histórica dos cidadãos, em sua permanente luta contra a opressão do poder.
É interessante registrar, no ponto, em reflexão sobre as origens históricas do direito fundamental de ser presumido inocente até o trânsito em julgado da condenação judicial, que, não obstante a sua consagração, no século XVIII, como um dos grandes postulados iluministas (para Beccaria, “A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz...”), essa prerrogativa não era desconhecida pelo direito romano, como resultava de certas presunções então formuladas (“innocens praesumitur cujus nocentia non probatur”), valendo mencionar o que se continha no Digesto, que estabelecia, em benefício daquele que era processado, verdadeiro favor rei, que enfatizava, ainda que de modo incipiente, essa ideia-força que viria a assumir grande relevo com a queda do Ancien Régime.
A presunção de inocência, a que já se referia Tomás de Aquino, em sua “Suma Teológica”, constitui resultado de um longo processo de desenvolvimento político-jurídico, com raízes, para alguns, na Magna Carta inglesa (1215), embora, segundo outros autores, o marco histórico de implantação desse direito fundamental resida no século XVIII, quando, sob o influxo das ideias iluministas, vem esse direito-garantia a ser consagrado, inicialmente, na Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776).
Esse, pois, o momento inaugural em que se deu o reconhecimento de que ninguém se presume culpado, nem pode sofrer sanções ou restrições em sua esfera jurídica senão após condenação transitada em julgado.
A consciência do sentido fundamental desse direito básico, enriquecido pelos grandes postulados políticos, doutrinários e filosóficos do Iluminismo, projetou-se, com grande impacto, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo art. 9º solenemente proclamava a presunção de inocência, com expressa repulsa às práticas absolutistas do Antigo Regime.
O que se mostra importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, é que, não obstante golpes desferidos por mentes autoritárias ou por regimes autocráticos, que preconizam o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário, a presunção de inocência, legitimada pela ideia democrática, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana.
Não foi por outra razão que a Declaração Universal de Direitos da Pessoa Humana, promulgada em 10/12/1948, pela III Assembleia Geral da ONU, em reação aos abusos inomináveis cometidos pelos regimes totalitários nazi-fascistas, proclamou, em seu art. 11, que todos se presumem inocentes, até que sobrevenha definitiva condenação judicial.
Essa mesma reação do pensamento democrático, que não pode nem deve conviver com práticas, medidas ou interpretações que golpeiem o alcance e o conteúdo de tão fundamental prerrogativa assegurada a toda e qualquer pessoa, mostrou-se presente em outros importantes documentos internacionais, alguns de caráter regional, como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948, Artigo XXVI), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969, Artigo 8º, § 2º), a Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 1950, Artigo 6º, § 2º), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Nice, 2000, Artigo 48, § 1º), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos/Carta de Banjul (Nairóbi, 1981, Artigo 7º, § 1º, “b”) e a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (Cairo, 1990, Artigo 19, “e”) e outros, de caráter global, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, § 2º), adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966.
Vê-se, desse modo, Senhor Presidente, que a repulsa à presunção de inocência, com todas as consequências e limitações jurídicas ao poder estatal que dela emanam, mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos cidadãos, restrições não autorizadas pelo sistema constitucional.
Torna-se relevante observar, neste ponto, a partir da douta lição exposta por ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Presunção de Inocência e Prisão Cautelar”, p. 12/17, 1991, Saraiva), que esse conflito ideológico entre o valor do princípio democrático, que consagra o primado da liberdade, e o desvalor do postulado autocrático, que privilegia a onipotência do Estado, revelou-se muito nítido na Itália, a partir do século XIX, quando se formaram, em momentos sucessivos, três escolas de pensamento em matéria penal: a Escola Clássica, cujos maiores expoentes foram FRANCESCO CARRARA E GIOVANNI CARMIGNANI, que sustentavam, inspirados nas concepções iluministas, o dogma da presunção de inocência, a que se seguiram os adeptos da Escola Positiva, como ENRICO FERRI e RAFFAELE GAROFALO, que preconizavam a ideia de que é mais razoável presumir a culpabilidade das pessoas, e, a refletir o “espírito do tempo” (Zeitgeist) que tão perversamente buscou justificar visões e práticas totalitárias de poder, a Escola Técnico-Jurídica, que teve, em EMANUELE CARNEVALE e em VINCENZO MANZINI, os seus corifeus, responsáveis, dentre outros aspectos, pela formulação da base doutrinária que deu suporte a uma noção que prevaleceu ao longo do regime totalitário fascista – a noção de que não tem sentido nem é razoável presumir-se a inocência do réu!!!
O exame da obra de VINCENZO MANZINI (“Tratado de Derecho Procesal Penal”, tomo I/253-257, item n. 40, tradução de Santiago Sentís Melendo e Mariano Ayerra Redín, 1951, Ediciones Juridicas Europa-América, Buenos Aires) reflete, com exatidão, essa posição nitidamente autocrática, que repudia “A chamada tutela da inocência” e que vê, na “pretendida presunção de inocência”, algo “absurdamente paradoxal e irracional” (op. cit., p. 253, item n. 40).
Mostra-se evidente, Senhor Presidente, que a Constituição brasileira, promulgada em 1988 e destinada a reger uma sociedade fundada em bases democráticas, é bem o símbolo representativo da antítese ao absolutismo do Estado e à força opressiva do poder, considerado o contexto histórico que justificou, em nosso processo político, a ruptura com paradigmas autocráticos do passado e que baniu, por isso mesmo, no plano das liberdades públicas, qualquer ensaio autoritário de uma inaceitável hermenêutica de submissão, somente justificável numa perspectiva “ex parte principis”, cujo efeito mais conspícuo, em face da posição daqueles que presumem a culpabilidade do réu, ainda que para fins extrapenais, será a virtual esterilização de uma das mais expressivas e historicamente significativas conquistas dos cidadãos, que é a de jamais ser tratado, pelo Poder Público, como se culpado fosse!
O postulado do estado de inocência, ainda que não se considere como presunção em sentido técnico, encerra, em favor de qualquer pessoa sob persecução penal, o reconhecimento de uma verdade provisória, com caráter probatório, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção de que é inocente.
(...).
Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral.
Nem se diga que a garantia fundamental de presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves conseqüências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição –, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.
(...) O que se mostra relevante, a propósito do efeito irradiante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, como resulta dos julgamentos ora mencionados, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!” (ênfases acrescidas)
Essas noções essenciais a respeito da garantia fundamental da presunção de inocência, especialmente a da sua aplicabilidade em todos os domínios jurídicos (penal, civil, administrativo etc.), foram reafirmadas em julgamentos posteriores da Corte – apesar das relativizações estabelecidas, no âmbito do processo eleitoral, nas ADC n. 29 e n. 30 –, permanecendo intocadas mesmo em face de certos matizes estabelecidos sobre essa garantia em algumas decisões mais recentes em tema de processo penal (HC n. 126.29220; ADC-MC n. 4321).
O voto condutor do julgamento do MS 23.262, do Ministro Relator Dias Toffoli, se baseia nesse entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, principalmente no precedente da ADPF n. 144, que consolida a aplicabilidade da garantia da presunção de inocência em âmbitos extrapenais e, portanto, também na esfera do processo administrativo disciplinar.
Fixada a premissa material de base, calcada na jurisprudência da Corte sobre o núcleo protetivo da garantia da presunção de não-culpabilidade, especificamente sobre sua projeção no processo administrativo disciplinar, não há como adotar outra posição senão a de que o art. 170 da Lei 8.112, de 1990, viola o art. 5º, LVII, da Constituição.
O art. 170 da Lei 8.112, de 1990, dispõe que “extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor”. Como esclarecido na decisão do STF, essa norma tem origem histórica na Formulação n. 36 do extinto Departamento de Administração do Serviço Público (DASP, instituído pelo Decreto-Lei n. 578/1938), ainda sob a égide do anterior Estatuto dos Funcionários Públicos da União (Lei n. 1.711/1952), cujo enunciado estabelecia que “se a prescrição for posterior à instauração do inquérito, deve-se registrar nos assentamentos do funcionário a prática da infração apenada”.
A teleologia do art. 170 da Lei n. 8.112/1990, portanto, é a de normatizar a prática administrativa de registro nos assentos funcionais do servidor de fato que, apesar da existência de indícios de infração disciplinar, não poderá ser mais objeto de apuração em processo administrativo com o objetivo de se constatar a materialidade, autoria e culpabilidade, em razão da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva e da extinção da punibilidade.
Essa ideia central que lastreia o art. 170 da Lei 8.112/1990, como verificado pelo Supremo Tribunal, contraria o conteúdo essencial da garantia da presunção de inocência, na medida em que impõe à Administração um dever de adotar uma medida restritiva da esfera pessoal e funcional do servidor com base em fato que sequer poderá ser objeto do devido processo administrativo e, portanto, não poderá ser submetido ao procedimento formal de verificação e de formação de culpa. Na lógica estabelecida pelo dispositivo, baseada em antiga prática administrativa, a mera instauração de procedimento investigativo legitima os apontamentos de conduta desabonadora na ficha funcional do servidor, mesmo nas hipóteses em que ocorra a prescrição e se extinga a punibilidade no curso do processo. Fica configurada, com isso, a violação à garantia constitucional que o indivíduo tem de não sofrer antecipadamente as consequências jurídicas de uma condenação que, além de incerta, não poderá vir a ocorrer em virtude da prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública.
Por isso, tal como deixou consignado o Relator, Ministro Dias Toffoli, “é forçoso concluir que a Administração Pública Federal persevera na prática institucionalizada na Formulação nº 36 do extinto DASP, bem como que o art. 170 da Lei nº 8.112/90 tem como finalidade legitimar, apenas em virtude da ‘instauração de inquérito’, a utilização dos apontamentos para desabonar a conduta do servidor, a título de maus antecedentes, em caso de eventual responsabilização futura por outra infração disciplinar”.
A garantia da presunção de inocência deve funcionar como um bloqueio a essas intervenções restritivas na esfera funcional do servidor público que se justificam apenas na mera instauração de procedimento investigativo ou de processo administrativo disciplinar. Na hipótese de prescrição da pretensão punitiva, portanto, deixa de existir qualquer possibilidade futura de formação de culpa por parte da autoridade competente. E, conforme a garantia da presunção de não-culpabilidade, a Administração não pode mais se basear no fato atingido pela prescrição para adotar medidas restritivas contra o servidor. Assim, como conclui o Ministro Dias Toffoli, “consumada a prescrição antes de instaurado o PAD ou em seu curso, há impedimento absoluto da prática de ato decisório condenatório ou formação de culpa definitiva por atos imputados ao investigado no período abrangido pelo instituto. Por ser matéria de ordem pública, deve a autoridade julgadora, no momento em que instada a se manifestar, reconhecer ou não a estabilização da relação intersubjetiva entre a Administração Pública e o servidor pelo decurso do tempo”.
Nesse aspecto, a presunção de inocência possui uma relação intrínseca com o princípio da segurança jurídica, em seu sentido objetivo, como norteador da regularidade dos atos estatais e da estabilização de expectativas dos indivíduos, assim como em sua feição mais subjetiva, como princípio da proteção à confiança legítima em relação à conduta do Estado. O instituto da prescrição, nesse sentido, ao exigir a extinção do processo em curso ou impedir a instauração de um novo procedimento, em virtude da extinção da punibilidade, garante a regularidade e a estabilidade das relações entre indivíduo e Estado, obstando, igualmente, quaisquer medidas restritivas fundadas no fato abarcado pela prescrição. Como afirmou o Ministro Dias Toffoli em seu voto no MS 23.262, “o reconhecimento da prescrição da ação disciplinar acarreta, então, a extinção do PAD desde o exaurimento do prazo prescricional, impedindo que a controvérsia subsista por tempo maior que o lapso temporal estabelecido pelo legislador ordinário no art. 142 da Lei nº 8.112/90, prestigiando-se o princípio da segurança jurídica, que deve ser ressaltado no caso de aplicação de regras sancionadoras e da incidência de seus efeitos”.
Portanto, na linha argumentativa seguida pelo STF, é possível afirmar que, se a garantia da presunção de inocência no âmbito dos processos administrativos disciplinares impede que o servidor sofra antecipadamente os efeitos jurídicos sem a consolidação processual de um status de culpabilidade, com maior razão ela bloqueia qualquer medida restritiva da condição funcional do servidor se, verificada a prescrição e extinta a punibilidade, deixe de existir a potencialidade de formação processual da culpa.
O voto do Relator, nesse sentido, conclui que “o status de inocência deixa de ser presumido somente após a decisão definitiva na seara administrativa, ou seja, não é possível que qualquer consequência desabonadora da conduta do servidor decorra tão só da instauração de procedimento apuratório (sindicância ou PAD) ou da decisão que reconheça a incidência da prescrição antes de deliberação definitiva de culpabilidade”.
Ressalte-se, por fim, que o entendimento consagrado no MS 23.262 não colide com os posteriores pronunciamentos do STF sobre o princípio da presunção de inocência em âmbito penal e processual penal, como os ocorridos nos julgamentos do HC 126.29222 e da ADC-MC n. 4323, os quais afirmaram que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência. Se nesses últimos pronunciamentos o STF admite que a deliberação judicial colegiada de segunda instância constitui um meio processual idôneo e suficiente para a caracterização da culpabilidade exigida pelo dispositivo constitucional do art. 5º, LVII, para fins de execução da pena no processo penal, no MS 23.262, por outro lado, tem-se entendimento consolidado, e ainda não superado, que leva em conta a hipótese de prescrição da pretensão punitiva e, portanto, a extinção do processo administrativo no qual se poderia, eventualmente, ocorrer a formação da culpa, caso em que a própria caracterização da culpabilidade deixa de ser algo sequer potencial ou plausível.
Assim, permanece plenamente vigente o entendimento fixado pelo STF no MS 23.262/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, com base em sua própria jurisprudência a respeito do conteúdo essencial da garantia da presunção de inocência, no sentido da inconstitucionalidade, por violação ao art. 5º, LVII, da Constituição, do art. 170 da Lei n. 8.112/1990, que dispõe que “extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora determinará o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor”.
III. CONCLUSÃO
Estas são as razões pelas quais se conclui que a Administração Pública Federal deve observar, respeitar e dar efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal que, no julgamento do Mandado de Segurança n. 23.262/DF, Relator Ministro Dias Toffoli, declarou a inconstitucionalidade do art. 170 da Lei n. 8.112/1990.
Ante o exposto, tendo em vista a garantia da presunção de inocência, prevista no art. 5º, LVII, da Constituição, e em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança n. 23.262/DF, a Administração Pública Federal deve observar a norma segundo a qual, no âmbito dos processos administrativos disciplinares, uma vez extinta a punibilidade pela prescrição, a autoridade julgadora não poderá fazer o registro do fato nos assentamentos individuais do servidor público.
Em caso de acolhimento das presentes conclusões, este parecer poderá ser submetido à aprovação do Presidente da República, e uma vez publicado juntamente com o despacho presidencial, deverá vincular a Administração Pública Federal, cujos órgãos e entidades ficarão obrigados a lhe dar fiel cumprimento (artigos 40 e 41 da Lei Complementar n. 73/1993), a partir da data dessa publicação.
À consideração superior.
Brasília, 5 de dezembro de 2016.
ANDRÉ RUFINO DO VALE
Consultor da União
MARCELO
AUGUSTO CARMO DE VASCONCELLOS
Consultor-Geral da União
1 DATA DE PUBLICAÇÃO DJE 30/10/2014 - ATA Nº 160/2014. DJE nº 213, divulgado em 29/10/2014.
2 Constituição Federal: Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
3 Após consulta atualizada da tramitação do expediente encaminhado pelo STF ao Senado Federal para o exercício da atribuição prevista no art. 52, X, da Constituição, em relação à decisão proferida no MS n. 23.262 (concessão de efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade do referido art. 170 da Lei n. 8.112/1990), foi verificado que o processo encontra-se, desde o último dia 3 de junho de 2016, na fase primária de aguardar a designação de Relator no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daquela Casa Legislativa.
4 Lei Complementar n. 73/1993: “Art. 40. Os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República. § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento. (...) Art. 41. Consideram-se, igualmente, pareceres do Advogado-Geral da União, para os efeitos do artigo anterior, aqueles que, emitidos pela Consultoria-Geral da União, sejam por ele aprovados e submetidos ao Presidente da República”.
5 SUMMERS, Robert S.. Two Types of Sustantive Reasons: The Core of A Theory of Common Law Justification. In: Cornell Law Review, nº 63, 1978, p. 730. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason. Springer, Law and Philosophy Library 8; 2009, p. 259.
6 ATIENZA, Manuel. O argumento de autoridade no Direito. Trad. de André Rufino do Vale. Revista NEJ, Vol. 17 - n. 2 - p. 144-160 / mai-ago 2012.
7 HART, Herbert L.A.. Commands and Authotitative Legal Reasons. In: Essays on Bentham. Jurisprudence and Political Theory. Clarendon Press: Oxford, 1982.
8 SCHAUER, Frederick. Authority and Authorities. In: Virginia Law Review, vol. 94, 2008, pp. 1931-1961.
9 RAZ, Joseph. Razón práctica y normas. Trad. de Juan Ruiz Manero. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales; 1991, p. 151 e ss.
10 WALDRON, Jeremy. Stare Decisis and the Rule of Law: A Layered Approach. (First Draft, August 2011), October 11, 2011, NYU School of Law, Public Law Research Paper No. 11-75.
11 Rui Barbosa havia sugerido a seguinte emenda ao art. 34 do Projeto de Constituição elaborado pela denominada “Comissão dos Cinco”, criada pelo Governo Provisório por meio do Decreto n. 23, de 3 de dezembro de 1889: “Art. 34. Compete privativamente ao Congresso Nacional: (...) § 18. Criar tribunais subordinados ao Supremo Tribunal Federal”. Cf. BARBOSA, Rui. A Constituição de 1891. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XVII. Tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946, p. 40.
12 Constituição de 1934, Artigo 88: “Ao Senado Federal, nos termos dos arts. 90, 91 e 92, incumbe promover a coordenação dos Poderes federais entre si, manter a continuidade administrativa, velar pela Constituição, colaborar na feitura de leis e praticar os demais atos da sua competência”.
13 Constituição de 1934, Artigo 91, IV: “Compete ao Senado Federal: (...) IV – suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”.
14 O dispositivo foi reiterado nos textos de 1946 (art. 64), de 1967/1969 (art. 42, VII) e de 1988 (art. 52, X).
15 BROSSARD, Paulo. O Senado e as leis inconstitucionais, Revista de Informação Legislativa, 13(50):61.
16 MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004.
17 Na RCL n. 4.335, o STF discutiu sobre a possibilidade de a decisão de inconstitucionalidade proferida no Habeas Corpus 82.959, em sede de controle difuso, poderia revestir-se de eficácia erga omnes independentemente da resolução do Senado Federal.
18 Há muito o Supremo Tribunal Federal entende que o Senado não está obrigado a proceder à suspensão do ato declarado inconstitucional (MS 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ de 25.05.1966). Assim ensinava o Ministro Victor Nunes: “(...) o Senado terá seu próprio critério de conveniência e oportunidade para praticar o ato de suspensão. Se uma questão foi aqui decidida por maioria escassa e novos Ministros são nomeados, como há pouco aconteceu, é de todo razoável que o Senado aguarde novo pronunciamento antes de suspender a lei. Mesmo porque não há sanção específica nem prazo certo para o Senado se manifestar”.
19 STF, ADPF n. 144, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno 06.08.2008, DJe 26.02.2010.
20 No HC 126.292/SO, Rel. Min. Teori Zavascki, o STF decidiu que a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.
21 ADC-MC n. 43, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 11.10.2016.
22 HC 126.292/SO, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 16.05.2016.
23 ADC-MC n. 43, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 11.10.2016.
Este texto não substitui o publicado no DOU de 11.1.2017